segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A era do desperdício

 


Pertenço à geração nascida nos anos 50 do sec. XX. Até há alguns anos não tive verdadeira consciência de como o fim da Segunda Grande Guerra acontecera menos de dez anos antes de ter nascido, certamente porque em Portugal não sofremos a desgraça da destruição de cidades que quase toda a Europa conheceu.

Mas testemunhei um mundo que já acabou, embora ainda muitos de nós não o reconheçamos e muito menos o aceitemos como realidade. Ao contrário dos mais jovens que já perceberam várias coisas, entre as quais que provavelmente irão viver com mais dificuldades económicas que os pais, que não terão provavelmente as mesmas possibilidades de trabalho e que a remuneração será mais baixa, que viverão num mundo mais inseguro mas mais aberto e que, fundamentalmente, o seu será um mundo mais tecnológico e desumanizado, menos próspero, menos limpo e mais áspero.

De facto, as 2 ou 3 décadas que se seguiram à IIGG foram, no mundo ocidental, de uma prosperidade nunca antes vista. Foi o tempo em que era possível sonhar tudo, até levar o Homem à Lua. O que aconteceu, em 1969!

Mas, como acontece a tudo o que é bom, essa era teve um fim. Como que numa bebedeira colectiva, estamos hoje a viver a ressaca desse tempo. A economia tinha uma caraterística linear: produzir, usar e deitar fora. O paradigma dessa economia será, para nós, uma célebre marca espanhola: comprar roupa barata, para usar umas (poucas) vezes, para logo substituir por outra em tudo semelhante descartando a “antiga”, assim continuando indefinidamente. O velho tempo em que se comprava roupa para durar anos a fio, feita de bons materiais, mas que não podia acompanhar a moda sempre a mudar, parecia ter terminado. O que não terminava de crescer era o lixo produzido por esse tipo de economia, já que tudo o mais seguia a regra da roupa, desde os automóveis à mobília e aos telemóveis. Há mesmo quem garanta que os electrodomésticos eram construídos com uma pequena peça mais frágil que viria a ditar o fim da vida útil dos aparelhos, assim se assegurando um mercado infindo.


E o lixo acumulou-se por todo o mundo, de várias maneiras, desde os continentes aos rios e mares, incluindo a atmosfera. Entretanto estamos a tomar consciência de que esse mundo acabou, tal como a forma como utilizamos tudo o que o planeta em que vivemos nos proporciona tem obrigatoriamente de acabar. Cerca de um terço do que consumimos acaba, mais cedo do que tarde, no lixo. Muito disso seria facilmente recuperável e reutilizável, seja por nós próprios, como por quem dificilmente tem acesso a esses produtos. Por outro lado, muito do que acumulamos nas nossas casas ao longo dos anos, é, se pensarmos bem nisso, perfeitamente dispensável e apenas um peso para os descendentes que de tudo isso dificilmente poderão tirar algum valor.

É também sabido que, de toda a comida que produzimos nas nossas casas, um terço vai igualmente para o lixo, num desperdício gigantesco e socialmente intolerável em absoluto.

Não é mais possível continuar neste caminho. Por isso, lentamente, o conceito de sustentabilidade vai tomando um lugar cada vez mais importante, na economia em geral, mas também no nosso quotidiano.

O velho conceito linear de produzir, consumir e deitar fora está a ser substituído pelo circular que consiste em produzir, utilizar e reciclar para reutilizar, evitando o desperdício e a produção descontrolada de lixo.

Não se pense que se trata de um conceito vago ou abstracto que não nos diz respeito a todos nós em particular. Trata-se sim de tornar o nosso mundo sustentável, isto é, que seja possível entregá-lo sucessivamente às gerações seguintes melhor ou pelo menos igual ao que é recebido. Isto em relação às questões macro que respeitam aos países e grandes empresas globais, mas também a cada um de nós na nossa vida profissional e pessoal. Começando pelos nossos hábitos de consumo e acabando na cozinha e no destino aos excedentes vários que todos os dias produzimos. E atenção: o mundo está mesmo a mudar; mais do que nós vemos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 Out 2023
Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Pobreza, a nossa vergonha

 


Há poucos dias foi assinalado o “Dia Internacional para a erradicação da pobreza”. A existência de pobreza entre nós, no ano de 2023, é algo que só por si nos deveria deixar a todos envergonhados, mas principalmente àqueles que de algum modo têm tido responsabilidades na governação dos destinos do país.

Quando se fala muito de pobreza lembro-me sempre de uma história dos tempos do PREC, suponho que em 1975, quando Otelo Saraiva de Carvalho foi visitar a Suécia, na altura tida como um farol do desenvolvimento e de justiça social. Em reunião com o Primeiro-Ministro Olof Palme, Otelo ter-lhe-á dito que ia acabar com os ricos em Portugal, ao que Palme terá retorquido que eles na Suécia, queriam acabar com os pobres.

Curiosamente, nesta simples troca de palavras reside ainda hoje a explicação de muito do que se passa em Portugal quando ouvimos grande parte dos nossos responsáveis políticos. Na verdade, o caminho para erradicação da pobreza passa por criar riqueza, para que depois possa ser distribuída. O que depende da evolução positiva de economia (isto é, do conjunto das empresas) em relação com os outros países, desde logo na União Europeia em que nos inserimos, mas também no resto do mundo, hoje globalizado.

E a nossa trajectória não tem sido famosa, muito pelo contrário. Desde logo, no que se refere à nossa produção. O nosso produto per capita (em unidades de poder de compra, para que se possam fazer comparações), desceu de 85% da média europeia em 2000 para 77% em 2022. Significou esta evolução uma queda de 6 lugares no ranking desde 2002 e de 3 lugares apenas nos últimos 6 anos: a lanterna vermelha já não está longe. De melhor aluno da UE passámos, em pouco tempo, para um dos piores. E outros indicadores ajudam a compreender melhor a situação. Desde logo a produtividade: na UE a 27, Portugal ocupa o 4º lugar a partir do pior, com uma taxa de produtividade do trabalho, por hora de trabalho de 64, para uma base 100 da UE. Como o problema da habitação se tornou novamente agudo 60 anos depois dos anos 60, constata-se que Portugal e Espanha, são dos países com mais baixa percentagem de casas públicas. Pior só mesmo a Lituânia enquanto, não surpreendentemente, os Países Baixos ocupam, de longe, o melhor lugar dessa lista. Outro sinal é-nos dado pela percentagem dos fundos comunitários no investimento público em que Portugal ocupa, de longe, o lugar cimeiro: 80% contra uma média europeia de 14%. Os sem-abrigo aumentaram 78% em Portugal, sendo hoje mais de dez mil.


Com toda esta evolução, o que seria de admirar era que a pobreza estivesse a diminuir em Portugal, quando o sucesso político é medido pela aproximação do ordenado mínimo obrigatório ao ordenado médio, levando mesmo esse ordenado mínimo a entrar na faixa dos que pagam IRS.

De acordo com o Relatório Anual “Portugal, Balanço Social 2022” da Nova School of Business Economics, “este ano, Portugal registou uma taxa de risco de pobreza superior à média da UE (16,8% vs. 18,4%)… Em 2020, a Bulgária é o país com maior taxa de risco de pobreza ou exclusão social (Portugal ocupa a 14.ªposição) e a Letónia é o país com maior taxa de risco de pobreza (Portugal ocupa a 18ª posição). A maior taxa de privação material e social é da Roménia (23,1%) e a menor da Finlândia (1,1%), ocupando Portugal a 6.ª posição, ex aequo com a Letónia.”

As consequências, todos nós as vemos diariamente. Em Portugal, se a percentagem de pessoas que têm dificuldade em lidar com as despesas usuais (56%) já é elevada, esse valor torna-se verdadeiramente aflitivo para os que estão em situação de pobreza: 80%. Como são quase dois milhões os portugueses que vivem com pouco mais de 500 euros por mês, percebe-se ainda melhor a situação que estamos a viver.

O Governo avança com um “Plano de Ação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2022-2025” com 270 medidas de combate à pobreza. Medidas essencialmente assistencialistas, bem vindas, e certamente necessárias e urgentes, perante a realidade que nos assola. Mas que não resolverão o problema de fundo e não nos devem levar a deixar de ver a situação na sua globalidade. A questão essencial é que estamos a ficar relativamente mais pobres. E a pobreza só se combate com a criação de riqueza. Como diria um antigo presidente americano em campanha eleitoral: «it´s the economy, stupid». Na verdade, para além de assistir em emergência àqueles em situação desesperada, há que criar condições para que a economia cresça, favorecendo o desenvolvimento das classes médias e a diminuição drástica do número de portugueses pobres ou em risco de pobreza.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 Outubro 2023

Imagens retiradas da Internet

terça-feira, 17 de outubro de 2023

A importância de um simples “mas”

 


O dia 7 de Outubro de 2023 vai ficar tragicamente marcado na História de Israel, mas também de todo o Médio Oriente e da própria Humanidade. Nas primeiras horas desse dia, enquanto lançavam milhares de rockets sobre Israel, mais de mil combatentes do Hamas entraram em Israel através da fronteira com a faixa de Gaza. Se o lançamento dos rockets já não constitui novidade, apenas surpreendendo pela quantidade, o que foi levado a cabo no terreno pelos combatentes do Hamas foi algo de chocante, ficando nos anais de terror da História da Humanidade.

O Hamas aproveitou uma festividade judaica para fazer o ataque, como já tinha acontecido há 50 anos na Guerra do Yom Kippur. Só que se aí foi o início de uma guerra de exércitos, aqui foi diferente. Os atacantes do Hamas, dando execução a uma acção premeditada e meticulosamente preparada, passaram a fronteira da faixa de Gaza com Israel e atacaram civis. Primeiro dirigiram-se a um festival onde jovens dançavam e cantavam. Chegaram e descarregaram friamente as metralhadoras sobre os jovens, matando logo ali mais de 200 pessoas. Muitas que tentaram fugir, de carro pelas estradas ou a pé pelos campos, foram perseguidas e eliminadas a tiro, com granadas e até rockets. Depois percorreram as quintas agrícolas da região, entrando nas casas onde ainda muitos habitantes dormiam e eliminaram imediatamente todas as pessoas que encontraram, fossem homens, mulheres ou crianças e bebés. Centenas de judeus foram assim mortos no que foi a maior barbárie que se possa imaginar. Aquelas famílias que se esconderam nos refúgios das casas cujas portas os elementos do Hamas não conseguiram ultrapassar foram pura e simplesmente queimadas vivas por as casas serem incendiadas com esse objectivo. Tudo isto durou quase três dias até que as forças militares de Israel conseguissem terminar com a acção do Hamas. Na retirada, o Hamas levou consigo para Gaza pela força, como reféns, mais de uma centena de pessoas das mais diversas idades e nacionalidades.

É evidente que a provocação do Hamas a Israel foi o mais longe possível, pior não se imaginaria, com o simples objectivo de que a reacção seja também violenta e que provoque o maior número de mortos civis entre os palestinianos de Gaza. Em princípio o seu próprio povo.


Esta acção teve lugar num contexto internacional muito específico, não tendo nada a ver com a libertação do povo da Palestina que, na prática, ele próprio é refém do Hamas. O Hamas conseguiu retirar de cena os outros movimentos palestinianos como a Al-Fatah e a OLP, eliminando qualquer hipótese de aplicação dos Acordos de Oslo de 1994 e criação de dois Estados, que permitiria a paz na região.

É visível a mão do Irão na preparação do que aconteceu. Os xiitas não podiam permitir que as negociações em curso entre Israel e a Arábia Saudita chegassem a bom porto e que o país enorme onde se localizam as cidades santas de Meca e Medina reconhecesse o Estado de Israel. Já a Rússia não condena o ataque. Para Putin é muito conveniente este novo foco de guerra com um aliado dos EUA, que assim passam a ter outro destino imediato urgente de apoio financeiro e de armamento, para além da Ucrânia.

Com tudo o que se está a passar, não deixa de ser surpreendente que, enquanto decorria o massacre de judeus perpetrado pelos terroristas do Hamas, a própria comunicação social praticamente não começava os comentários sobre este assunto, sem que surgisse um “mas” relativo à política interna de Israel ou mesmo sobre a existência deste Estado. O que se está passar é algo completamente novo e o Hamas e seus mentores internacionais estão a manter como reféns, não só os raptados em Israel, mas toda uma comunidade internacional. Para além dos desgraçados que vivem em Gaza sobre os túneis e paióis subterrâneos do Hamas. As regras e convenções sobre guerra que supunhamos minimamente estabelecidas e aceites foram completamente estilhaçadas e atiradas para o lixo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Outubro 2023

Imagens recolhidas na internet