E as
minhas memórias continuam a projectar-se com clareza e rapidez na minha mente.
Vem-me à lembrança que me pus a viajar pela Europa, e como durante três anos,
entre 1425 e 1428, conheci terras e gentes tão diferentes. Houve até quem
dissesse que percorri As Sete Partidas.
E devo dizer que o caso não era para menos. De Coimbra fui até Paris, seguindo
depois para Inglaterra onde, no meio de grandes festas e magníficas recepções,
o meu tio Henrique IV me investiu cavaleiro da Ordem da Jarreteira. Passei à
Flandres e, tomando consciência dos diversos atrasos do meu país, de Bruges
escrevi uma carta a meu irmão Duarte dando-lhe conselhos para quando fosse Rei.
Entre outras ideias para a boa governação, recordei-lhe a má instrução
generalizada do clero português e propus-lhe a criação de Colégios na Universidade
de Lisboa, à semelhança de Oxford e de Paris. Passei pela Alemanha e fui a
Viena, onde com os meus homens ajudei o Imperador Segismundo nas suas guerras
contra os turcos com tanto sucesso que me investiu no domínio da Marca
Trevisiana com o título de Marquês de Treviso. Depois da paz, segui para Veneza
e aí tive a oportunidade de ficar alojado no mais belo palácio que em toda a
minha vida me foi dado visitar e onde me ofereceram festas com centenas de
pessoas, incluindo belas mulheres com tais trajes e jóias resplandecentes como
não imaginava existirem. Claro que da Serenissima passei a Roma, onde o Papa
Martinho V me ofereceu uma sagrada relíquia do mártir S. Sebastião que trouxe
para Portugal e levei para a Igreja de Santa Maria do Mourão em Tentúgal, nos
meus domínios de Montemor-o-Velho. A minha paragem seguinte, antes do regresso
a Portugal, foi na cidade ducal de Barcelona. Aí tratei do meu casamento com
Isabel, condessa de Urgel, filha do conde Jaime II de
Urgel e da infanta Isabel de Aragão, por quem me apaixonei.
Infelizmente, o meu irmão Duarte acertou também pela mesma altura o seu
casamento com Leonor, filha do Rei de Aragão Fernando I, conhecido por de Antequera,
e que era também bisneta do rei Pedro I de Portugal e de Inês de Castro por ser neta da filha deles,
Beatriz de Portugal. Como o pai da minha adorada Isabel não tinha aceite a
escolha de Fernando de Antequera como Rei de Aragão e por isso foi preso
durante muitos anos, as relações entre Isabel e Leonor mulher de meu irmão Duarte
nunca foram as melhores.
Lembro
a subida do Duarte ao trono em 1433 e de como tantas esperanças pusemos no seu
reinado, porque nunca Portugal havia tido um rei tão culto e preocupado com o
bem-estar dos seus súbditos. Infelizmente, a peste levou-o apenas cinco anos
depois. No seu reinado tivemos a maior tragédia das nossas vidas. O nosso Rei
deixou-se levar pela sede de glória juvenil do nosso irmão mais novo Fernando
que, apoiado pelo Henrique, o convenceram a preparar um ataque a Tânger para
conquistar essa cidade, à semelhança do que tínhamos feito em Ceuta. Eu e o
nosso irmão João tudo fizemos para os demover dessa louca ideia, mas nada
conseguimos. Eram muitos os que, com espírito guerreiro antigo, queriam a
conquista do Norte de África mouro, em vez do que eu e o João defendíamos, que
era tentar navegar para Sul, pela costa africana desconhecida. E a derrota em
Tânger, em Setembro de 1437, ditou a triste sorte do Fernando que ficou refém
dos mouros que exigiram a devolução de Ceuta em troca da sua libertação. Como
sofri nesses anos em que defendi, sem sucesso, a devolução de Ceuta que só nos
trazia prejuízos de toda a ordem, até à morte do Fernando em 1437.
A morte
do Rei D. Duarte em 1438 foi apenas o início das minhas maiores atribulações. O
seu filho Afonso, o primeiro Príncipe de Portugal e não apenas filho
primogénito herdeiro, era demasiado novo para governar. O falecido Rei tinha
dado instruções para que a viúva Rainha D. Leonor fosse regente até à
maioridade do Príncipe, mas os meus irmãos Henrique e João, bem como muitos
concelhos como o de Lisboa, concordaram comigo em não a encontrar capaz de
exercer o cargo. E calhou-me em sorte, por ser o mais velho Tio do Príncipe
Afonso, ser escolhido como Regente nas Cortes de Lisboa de Dezembro de 1439.
(Segunda
de três partes de um pequeno ensaio, em estilo autobiográfico, sobre a vida de
D. Pedro, Duque de Coimbra)
Originalmente publicado no Diário de Coimbra, em 13 de Maio de 2019