Estamos
a 20 de Maio de 1449. Chegámos à ribeira de Alfarrobeira, às portas de Lisboa,
e vejo a força do exército do Rei D. Afonso V, meu sobrinho e genro, que nos
aguarda armado para a batalha. Tenho agora a certeza de que este será o último
dia da minha vida. O pequeno exército que reuni para me acompanhar nesta viagem
a Lisboa para tentar chegar à fala com o Rei não vai ter a mínima hipótese
contra tamanha força e é evidente que o Rei se decidiu pelo partido do meu
meio-irmão Afonso, Duque de Bragança, de quem vejo o estandarte bem enquadrado.
Desta vez, nem a minha querida filha Rainha Isabel conseguiu suster os ímpetos
guerreiros do seu marido. Ao não autorizar o Duque de Bragança a passar com o
seu exército de 3.000 homens pelos domínios do meu ducado de Coimbra quando se
dirigia para Lisboa há poucas semanas marquei a minha posição como senhor das
minhas terras mas percebo que cavei definitivamente um fosso intransponível
para a possibilidade de acordo com o Duque Afonso.
Dizem
que antes de morrer nos lembramos de tudo o que nos sucedeu ao longo da vida.
Será por isso que, ao ver as preparações do ataque do exército do Rei, com
tristeza me vêm agora à mente tantas recordações.
Lembro
como foram alegres e tranquilos os tempos de brincadeiras com os meus irmãos,
principalmente o Duarte com apenas mais um ano que eu mesmo e o pequenino João
com as suas travessuras. Do Pai, o Rei João, recordo o carinho com que desde
pequenos nos tratou e a preocupação que teve em que eu e os meus irmãos
tivéssemos uma educação cuidada e uma formação cultural que nos distinguisse
dos demais. Quando éramos adolescentes enviou-nos mesmo, a mim, ao Duarte e ao
Henrique para Inglaterra, onde aprendemos muitas coisas e a falar francês, a
língua da corte inglesa.
Recordo
a doçura de minha Mãe, a Rainha Filipa, para com todos os seus filhos. E de
como compreendia o seu papel nestes nossos tempos e como conhecia bem o íntimo
de todos nós, rapazes e raparigas. Mesmo estando já tão doente com essa maldita
peste que tanto nos aflige, mandou fazer três espadas que entregou aos filhos
mais velhos antes da viagem para Ceuta, cada uma delas com diferentes funções
dentro das regras da cavalaria. Ao Duarte que seria Rei por ser o mais velho,
entregou a espada da Justiça, ao Henrique encomendou todos os senhores, cavaleiros
e escudeiros do reino e a mim próprio me encomendou as donas e donzelas por
cuidado.
Com as
espadas de minha Mãe ali mesmo em Ceuta fomos os três armados cavaleiros depois
da conquista da cidade africana, em 21 de Agosto de 1415. Infelizmente, a
Rainha Filipa tinha morrido no dia anterior à nossa partida para África.
Quando
regressámos de Ceuta, o Rei João fez de mim Duque de Coimbra e de meu irmão
Henrique Duque de Viseu numa festa que deu brado. Éramos os dois únicos duques
do Reino já que Duarte era destinado a ser Rei. Os meus domínios eram extensos,
abrangendo terras de Coimbra, Águeda e Montemor-o-Velho, tendo sido em Coimbra
que estabeleci a minha residência, enorme honra visto ter sido a primeira
capital do Reino, onde tinham nascido tantos reis e onde se encontra sepultado
o meu longínquo Avô Afonso Henriques, o primeiro de todos. Nem esqueço que foi
nas Cortes realizadas em Coimbra que meu Pai foi aclamado Rei de Portugal, em 6
de Abril de 1385 com o apoio de João das Regras e de Nuno Álvares Pereira. Ser
Duque de Coimbra encheu-me realmente de orgulho e toda a minha vida fiz o que
pude pela Cidade e seus habitantes.
Tudo o
que em jovem me tinham ensinado e o cuidado com o governo dos meus domínios do
ducado de Coimbra levaram-me a escrever a Virtuosa
Benfeitoria, tarefa em que Frei João da Verba me deu prestimosa ajuda. Espero bem que, depois de me ir, possa
ainda servir de guia a reis e senhores nas suas governanças, percebendo como as
nossas sociedades se encontram estruturadas pelas benfeitorias que cada um
recebe do elo superior da cadeia, desde Deus até ao mais humilde servo.
(Primeira
de três partes de um pequeno ensaio, em estilo autobiográfico, sobre a vida de
D. Pedro, Duque de Coimbra)
Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Maio de 2019.
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