O que faz um majestoso túmulo muito antigo, para além de tudo ostentando as águias bicéfalas de Bizâncio numa Igreja de Coimbra, no caso a Sé Velha, perguntar-se-á um visitante curioso ao passar no lado do Evangelho daquele templo. Ainda por cima, a figura jacente do túmulo é de uma mulher, não havendo notícia de outras mulheres relevantes na Coimbra daqueles tempos, para além da Rainha Santa e de Inês de Castro.
O túmulo é de D. Vataça Lascaris, neta do imperador de Aleixo Comeno, da casa imperial dos Lascaris Vatatzes Komnenos, imperadores de Bizâncio-Niceia, por sua mãe a princesa Eudoxia Lascaris; pelo lado do seu pai o Conde Guilherme Pedro, descendia dos Condes de Ventimiglia, do Norte de Itália. Terá nascido por volta de 1270, tendo deixado a península italiana e ido viver para Aragão com a sua mãe após a morte do pai, dado o parentesco com a Casa Real.
A 11 de Fevereiro de 1282, celebrou-se em Barcelona o casamento do Rei D. Dinis com D. Isabel de Aragão tendo D. Vataça acompanhado a nova rainha de Portugal, sua familiar, integrada no seu séquito, assim se definindo a sua vida futura. Em Portugal, D. Vataça veio a casar com Martim Anes de Soverosa, muito mais velho do que ela, o qual veio a falecer poucos anos depois, em 1295 sem que, ao que se saiba, tenham tido filhos.
A sua viuvez bem como a ligação íntima com a rainha levaram a que tivesse acompanhado como camareira-mor a infanta D. Constança, filha de D. Dinis e D. Isabel quando esta foi para Castela em 1297 para casar, em Alcanizes, com o rei Fernando IV de Castela e Leão, após as lutas conhecidas entre os reinos irmãos. Na sequência da morte precoce de D. Constança ocorrida em 1313, apenas um mês depois de ter enviuvado e dos conflitos dinásticos que se lhe seguiram, D. Vataça regressou a Portugal. Há algum debate sobre as razões efectivas deste regresso para Portugal, por parte de alguém com imenso poder e património em terras espanholas, havendo quem defenda que, após ter enviuvado, D. Vataça terá tido uma relação de que eventualmente nasceu uma criança, uma menina que D. Vataça teria ter tido que proteger com enormes cuidados, o que ajudaria a explicar o seu regresso não havendo, no entanto, provas de que tal tivesse acontecido realmente.
Tendo vivido vários anos no palácio em Santiago do Cacém, onde tinha a sua própria corte, após a morte do rei D. Dinis, ocorrida em 1325, acompanhou ainda mais de perto a rainha D. Isabel, com quem foi morar nos paços de Santa Clara, junto do Mosteiro das clarissas Sendo uma mulher de uma enorme riqueza pessoal, que chegou a comprar castelos, passou a viver uma vida despojada junto da sua grande amiga Isabel. Contudo, para morada eterna encomendou para si própria um túmulo a Mestre Pêro, igualmente o autor do túmulo da Rainha Santa. Este último ficou no Mosteiro de Santa Clara, enquanto o de D. Vataça foi destinado à Sé de Coimbra, hoje a Sé Velha, a quem destinou grande parte da sua riqueza pela sua morte em 1336. A escultura jacente é magnífica, fazendo justiça à grandiosidade da princesa bizantina que representa, cujo «poder imperial» é marcado pelas águias bicéfalas, simbolizado o absoluto: a vida e a morte.
D. Vataça foi uma mulher que aliou ao poder material inerente ao seu nascimento, por pertencer a várias cortes, uma excepcional capacidade de influenciar reis, príncipes e dignitários religiosos do seu tempo, numa acção profícua do que hoje chamaríamos alta diplomacia, em particular nos reinos de Portugal, Castela e Aragão. Não por acaso, e é muito relevante para a compreensão da sua formação superior, entre as suas riquezas avultava uma biblioteca de vinte livros, num tempo em que um livro era um objecto extraordinário quer pelo pergaminho que era feito, quer por ser escrito e pintado de forma inteiramente manual. E é certamente de grande significado o facto de ter escolhido a Sé de Coimbra para o seu repouso eterno, sendo para mim um mistério a razão por que a sua história não é mais conhecida na nossa Cidade que parece tender a dar mais importância a mitos do que a personagens verdadeiras e significativas da nossa História.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Fevereiro de 2022
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