terça-feira, 17 de outubro de 2023

É em Setembro

 


A célebre canção interpretada por Gilbert Bécaud, que vai no título desta crónica, evocava o fim do Verão mas também o regresso à verdade da vida normal, “no tempo em que as uvas ficam vermelhas”, depois da artificialidade das férias em que multidões em viagem ocupam espaços que durante o resto do ano pertencem a quem lá habita. Canção que se lembra com saudade nestes tempos em que as estações de rádio parece terem sido ocupadas por distribuidoras americanas que delas expulsaram toda a música que não encaixa nos gostos por elas definidos, como a brasileira, a francesa ou a italiana. Não falo aqui de nostalgia, mas de distanciamento das estações de rádio relativamente à variedade musical de todo o mundo num imperialismo cultural evidente ditado por um completo controlo do mercado.

E é mesmo em Setembro que a Natureza se reequilibra permitindo-nos esquecer os calores extremos do Verão enquanto não chegam os frios do Inverno.

É o equinócio do Outono em que, no nosso hemisfério Norte, a eclíptica passa para o lado de baixo do Equador Celeste, no segundo momento do ano em que o dia e a noite têm a mesma duração. Equilíbrio celestial tão mais surpreendente, quanto mais estamos agora mais próximos do Sol.

É o tempo das colheitas depois da sementeira da Primavera e da maturação durante o Verão, permitindo encher os silos com o alimento que nos sustentará durante as longas noites e curtos dias do Inverno em que a Natureza descansará para a nova vida da próxima Primavera.

As árvores ganham um colorido quente de castanhos, vermelhos e dourados que cobrem os montes e vales com manchas de tons diferentes e sempre espectaculares.


Mas é também o tempo do regresso às escolas e é sempre comovente ver os jovens pais levar as suas crianças e ficar junto das vedações a observar atentamente e de forma algo preocupada os seus filhos e como se adaptam à nova vida. Claro que a gritaria bem-disposta daquelas crianças que se encontram em brincadeiras sempre animadas ajuda a animar os pais que assim se afastam mais conformados.

Nunca compreendi muito bem a aversão ao Outono que observo em muitas pessoas. Talvez seja a saudade dos longos dias de férias e de praia ou dos amores de Verão, eu sei lá, que também passei por tudo isso. Na realidade o Outono tem um encanto muito próprio trazendo-nos calma e preparando-nos para as dificuldades invernosas.

Comecei a crónica recordando uma música encerro-a lembrando outra famosíssima que tem mesmo a designação de “Outono”, da autoria do “Padre Vermelho” como era conhecido António Vivaldi por causa da cor do seu cabelo. Vivaldi escreveu as “Quatro Estações”, músicas com que não engracei durante muitos anos, porque se ouviam nos elevadores, algo que sempre me irritou profundamente. Aversão que as “Quatro Estações” partilhavam com a “Uma Pequena Serenata” de Mozart também irritantemente colocada nos elevadores um pouco por todo o mundo, não tendo o coitado do Mozart, claro, culpa nenhuma. 


Felizmente, com o decorrer dos anos fiquei a conhecer Vivaldi um pouco melhor, em particular pelas suas óperas das quais a “Ercole su’l Termodonte” é, para mim, absolutamente genial. Mas também com as “Quatro Estações” estabeleci as pazes a partir da audição da interpretação superlativa de Nigel Kennedy de uma forma totalmente diferente das antigas interpretações mais românticas, um tanto xaroposas.

Aproveitemos o Outono com olhos de ver, ouvidos de ouvir e narizes de cheirar, porque vale a pena.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 Setembro 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Capitalismo e política: que caminhos?

 


Para alguém que, como o autor destas linhas, sempre teve concordância com o sistema liberal que parte do pressuposto da liberdade económica considerando que o papel das empresas é fundamental para as sociedades, o que se observa no mundo actual suscita as maiores perplexidades. Nas últimas décadas, que coincidem curiosamente com o fim do comunismo, a desregulação económica acentuou-se e as consequências não são as mais agradáveis para a maioria da população. Paralelamente a uma desestruturação interior da sociedade, quase sempre patrocinada por esquerdas mais ou menos extremas, assistiu-se a uma desregulamentação da actividade económica, ou de parte dela, neste caso por influência de diversas direitas. Foi o caso da governação dos anos oitenta, com Reagan nos EUA e Tatcher no Reino Unido, neste caso bem secundada por Blair. Enquanto a pobreza é hoje um fenómeno generalizado no Reino Unido, a situação política nos EUA é de um extremar de posições muito perigoso que já chegou a levar Trump à presidência.

Também por cá se assiste a uma desregulação particularmente evidente em determinadas áreas. Desde os novos carros de aluguer com motorista de que a UBER foi pioneira até às trotinetes eléctricas de aluguer, o espaço público foi invadido por utilizações notoriamente abusivas das regras tidas como normais até há pouco tempo. Há poucos dias a polícia verificou que dentro de um carro TVDE além do motorista a conduzir havia outro a dormir no porta-bagagens. Quanto à utilização das trotinetes assiste-se a uma completa demissão de autoridades camarárias e policiais: desde trotinetes com duas pessoas a circulação em passeios ou sentido proibido até ao abandono nos locais mais estranhos e perigosos para os outros utentes, tudo se vê diariamente. Neste último caso, bastaria que as câmaras municipais penalizassem directamente as empresas proprietárias e levassem as trotinetes para que o assunto se resolvesse instantaneamente.

Com o beneplácito e evidente satisfação de governantes por esse mundo e cá também, a economia é cada vez mais digital. Sinal de evolução, mas que traz grandes problemas. Não será preciso acentuar que as APP’s que são muito interessantes e cada vez mais regulam a nossa vida só têm existência na internet e nos telemóveis, não tendo nada de físico ou palpável. A economia digital tem proporcionado a formação de grandes empresas que fogem à regulação pelos Estados e que fazem dos seus proprietários as pessoas mais ricas do mundo com uma concentração gigantesca de capital. Não preciso de lembrar a Microsoft, a Google, a Amazon ou o ex-Twitter. Todas elas empresas com uma forma muito própria de funcionar, em que os direitos dos trabalhadores conquistados ao longo de séculos são literalmente esquecidos em nome de uma estranha modernidade aceite contra todas as expectativas.


Para além da acumulação de capital inimaginável, essas empresas conseguem para os seus proprietários um poder que os transforma nos verdadeiros senhores do mundo actual. Claro que os multi-milionários politicamente poderosos sempre existiram, como os Rockfeller, mas o que se passa hoje é diferente.

Vejamos o caso de Elon Musk, tão admirado pelos famosos carros eléctricos Tesla. Depois de vender a PayPal por um valor inacreditável, dedicou-se a outras actividades tornadas possíveis pelo capital disponível. Por exemplo, actualmente é o único fornecedor americano do serviço de transporte de astronautas para Estação Espacial Internacional através da SpaceX. A NASA já não o consegue fazer, estando esse transporte totalmente privatizado. A que preço, só podemos imaginar.

Mas a guerra na Ucrânia trouxe ao nosso conhecimento outra actividade de Musk que faz dele mais poderoso que a maior parte dos políticos do mundo. Há poucos meses as forças ucranianas da contra-ofensiva viram-se de repente sem possibilidade de contactar umas com as outras e sem conseguirem sequer localizar-se com precisão. A situação significou ficarem de repente à mercê das forças russas. O que tinha acontecido? Elon Musk tinha cortado o acesso à Starlink, até ali fornecedor dessas informações ao lado ucraniano. Com urgência o governo americano contactou com o empresário, tendo a situação sido reposta. O custo disso é segredo do Estado americano, até hoje.

O mundo mudou muito e ainda vai mudar mais. O que nem sempre é positivo. A própria guerra está dependente de decisões empresariais e, neste caso, de Elon Musk que assume ter contactos directos com Putin e negócios com a China onde mais de metade dos seus Tesla são fabricados. É urgente que os Estados queiram e consigam voltar a regular a economia. É demasiado estranho e perigoso viver num mundo em que os governantes se demitem perante o poder de empresários globais, não assumindo os deveres de regulação que é suposto defenderem os direitos dos simples cidadãos que pagam impostos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Setembro de 2023

Imagens recolhidas na internet

 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

O “cronicador”


O exercício da actividade de cronista nos jornais consiste basicamente em comunicar com os concidadãos através da palavra escrita. Quem o faz poderá, portanto, ser designado como um comunicador específico não me parecendo abusivo apelidá-lo de cronicador.

As crónicas têm muito frequentemente o objectivo mais ou menos claro de influenciar os leitores nesta ou naquela direcção seja em política seja em qualquer outra área social. Aproveito para esclarecer que ao escrever “leitores” não estou a menosprezar as mulheres que me leem pela simples razão de que, em português, aquele termo abrange homens e mulheres, pela mesma razão pela qual também não se diz “portuguesos” e portuguesas e sim simplesmente portugueses”; aqui o respeito a ter é mesmo pela língua em que somos, sendo para mim incompreensível que responsáveis políticos aos mais altos níveis embarquem em tal confusão; claro que erros qualquer um os pode ter e, pessoalmente, já nestas páginas tive alguns, do que aliás me penitencio junto de todos os leitores.

Mas a escrita regular de crónicas pode ter em vista algo de muito diferente. Desde partilhar conhecimentos que na óptica do autor não deverão ficar fechados em qualquer academia, mas também de experiências vivenciadas, para além de comentários e críticas sobre a realidade que vivemos. Desta forma se estabelece uma ligação entre autor e leitores, que habitualmente permanece algo submersa surgindo, no entanto, à superfície em certas situações muitas vezes imprevistas.

No meu caso, já são mais de vinte anos de crónicas, que tiveram início num artigo publicado no saudoso “Comércio do Porto” ainda nos anos oitenta. A partir daí surgiram as publicações no Diário de Coimbra, jornal a que decidi manter-me fiel apesar de outros convites, mantendo a actual série semanal às segundas-feiras já há mais de dezassete anos.

 Escrever crónicas torna-se facilmente um hábito, possibilitando a abordagem dos mais diversos temas e até ensaios pontuais de estilos diferentes de escrita. Mantenho, contudo, a recusa do chamado novo acordo ortográfico que considero estúpido, ineficiente perante os objectivos que perseguia e mesmo desvirtuador da língua portuguesa.

Claro que, à medida que as crónicas se vão sucedendo, o mesmo sucede aos anos que passam com uma velocidade que não se imagina quando jovem. Em consequência, também a visão sobre o mundo vai evoluindo, o que se reflecte nos escritos. É verdade que noto um acréscimo de irritabilidade perante a mentira, a incompetência e completa irresponsabilidade de figuras públicas a quem se deveria aplicar o ditado de “não suba o sapateiro além da chinela”. Mas em geral o olhar sobre o que nos rodeia tornou-se mais suave e até meigo perante os desfavorecidos e fracos em geral, sem falar do carinho todo ele especial pelos netos. E as amizades! Algo que para todos nós imagino que tenha sido muito importante na juventude, os amigos, regressa com uma força inusitada. Libertos que nos encontramos dos horários laborais, voltamos a ter o prazer de conversar sobre tudo e mais alguma coisa, sem preocupações nem cuidados com o que se diz. Passar um dia de semana com velhas amizades com quem há anos não convivia desta forma como me sucedeu na semana passada não tem preço. Às vezes parece mesmo que os astros fazem por se alinhar.

E acabo por reconhecer um certo espírito desculpabilizante perante as afirmações de muitos daqueles que acima referi e que têm responsabilidades a nível colectivo, por terem sido escolhidos democraticamente: afinal eles são fruto da sociedade construída pela minha própria geração e, provavelmente, a mais não serão obrigados.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Setembro 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Os portugueses e a saúde


António Arnaut considerava o Serviço Nacional de Saúde como sendo “a trave mestra da democracia”. E tinha evidentemente razão mal andando aqueles que de forma, para mim incompreensível, tantas vezes manifestam desrespeito quer pelo SNS, quer pelo que foi o responsável político pela Lei do Serviço Nacional de Saúde aprovada em 15 de Setembro de 1979. Não esquecendo Mário Mendes que tecnicamente lhe deu forma e conteúdo. Também mal andou então a direita, em particular o PSD que, por razões de pormenor, não lhe deu o seu aval, não sendo capaz de distinguir o essencial do assessório ficando para sempre com o ónus dessa opção política. Erro que logo depois foi ultrapassado, durante a governação da AD e do PSD em maioria absoluta, participando de forma decisiva na construção  e desenvolvimento do SNS. Recordo apenas a criação das carreiras de enfermagem, médicas e das Administrações Regionais de Saúde, por exemplo, a que se adicionam os passos decisivos na Saúde Materno-Infantil.

O SNS, garantindo cuidados de saúde de qualidade a todos os portugueses independentemente da sua condição social ou económica, é fundamental para a segurança dos cidadãos e deve ser não só aceite como acarinhado pelas diversas forças políticas, seja qual for a sua orientação política.

Mas o nosso SNS está, obviamente, doente. Não interessa para aqui quem é o culpado disto ou daquilo, já que dizendo respeito a todos os portugueses, é matéria que deveria ser objecto de consenso e não de querelas ideológicas. A realidade com as suas consequências está infelizmente à vista de todos não sendo possível iludi-la por mais tempo.

O que se passou na semana passada em que um cidadão com noventa e três anos ficou seis horas numa maca dentro do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, à espera de que o socorressem até morrer é bem a prova disso. Aos mais diversos níveis. Vou descartar a hipótese de ter sido preterido por doentes mais novos que ainda são contribuintes para o Estado a nível de segurança social em vez de beneficiários líquidos como ele era porque penso que ainda não chegámos a esse ponto. Por enquanto. O serviço de urgência do hospital estaria desfalcado a nível de pessoal, fosse médico da urgência ou da cirurgia. Não haveria também disponibilidade de transporte para outro hospital por parte de quem o deveria fazer. Tudo questões que se percebe não serem exclusivas daquele hospital, mas generalizadas por todo o país.

Acontece que aquele hospital é actualmente gerido pelo Estado, quando antes o era por privados em regime de PPP. E esta situação nunca aconteceria então, desde logo porque o Estado não o permitiria, o que deveria fazer pensar duas vezes quem ideologicamente se preocupa mais com quem presta os serviços de saúde pública do que com os respectivos utentes.

O grande crescimento da procura de serviços de saúde não foi acompanhado por uma correspondente adaptação do SNS, o que se veio a reflectir na falta de resposta adequada (de qualidade e em tempo útil) pelo que a confiança pública desceu. Em consequência, os doentes têm-se virado para a oferta privada, o que se vê no elevado número de seguros de saúde subscritos e na despesa com serviços de saúde privados que é já uma das maiores da Europa, situação tão mais grave quanto os nossos ordenados são dos mais baixos também na Europa.  Nos últimos dias soube-se também da transferência de partos do SNS para as maternidades privadas com a mesma justificação, falta de confiança, situação incompreensível para quem se lembra do que se verificava há alguns anos, que era exactamente o oposto. Como se se tratasse de uma pescadinha de rabo na boca, outra consequência é o abandono do SNS por elevado número de médicos e enfermeiros. A resposta tem sido contratar empresas que fornecem horas de médicos no que constitui uma total inversão do que deve acontecer em cuidados de saúde, pela mercantilização de uma das actividades mais dignas da Humanidade.

A reforma do SNS é urgentíssima e nunca será constituída por uma soma de remendos pontuais ditados pela necessidade de correr a resolver situações urgentes. Exige capacidade de diálogo e vontade política de obter compromissos, para além de competência. O SNS é demasiado valioso para os portugueses para ser destruído à vista de todos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Agosto de 2023

Imagens retiradas da internet