segunda-feira, 26 de abril de 2021

Querida Baixa de então

 


Esta não é uma crónica sobre nostalgia, embora esteja seguro de que vai provocar alguma ou mesmo muita nalgumas pessoas. Sucede que numa destas noites sonhei com situações que se passaram comigo em duas lojas que se situavam na Baixa e que já não existem há muito. Quando acordei dei por mim a lembrar-me de mais algumas dessas lojas e devo confessar que fui atacado por uma enorme saudade.

Resolvi recordar aqui algumas dessas lojas, sem qualquer pretensão de rigor nem de ser exaustivo, já que se há algo que nos prega partidas é a memória, pelo que peço desde já desculpa pelas falhas que houver no texto. Certo é que de todas as lojas que vou referir guardo uma outra recordação pessoal, seja por alguma compra, seja pela interacção com os lojistas.

Vou, pois, convidar-vos a fazer uma piscina pelo canal e quem tiver mais de 50 anos percebe o que eu quero dizer com este convite. Quem não tiver…pergunte a alguém mais velho.

Ao lado da estátua de Joaquim António de Aguiar, o simpático «mata-frades» nascido ali bem perto, existia uma loja de tecidos, o «Novais», onde era possível escolher os tecidos das calças e dos casacos ou mesmo dos fatos, que se mandavam fazer um pouco mais à frente na Ferreira Borges no alfaiate Serafim ou no alfaiate Abito na Sá da Bandeira. Ainda na Portagem, lá estava a Hilda, casa de fotografia do Sr. Varela Pécurto que um dia, nos anos oitenta, foi comigo no helicóptero da BT da GNR fotografar as filas dos pontos de trânsito nevrálgicos de Coimbra, era eu funcionário autárquico.

Quando se queria comprar um «LP» havia a Valentim de Carvalho logo à entrada da Ferreira Borges onde a aparelhagem Rotel permitia ouvir com a maior qualidade. Mais adiante a discoteca da Novalmedina tinha a D. Adelina que tudo conhecia de filmes e músicas, principalmente de esquerda, claro…Na Visconde da Luz o Neves dos Vidros tinha o primeiro andar onde os pequenos estúdios permitiam fazer audição prévia dos discos e onde até o filho do dono, o saudoso Dr. Neves da Costa chegou, quando jovem, a ajudar na escolha.

O Arcádia e a Brasileira eram os cafés de excelência de Coimbra onde no primeiro se reunia a intelectualidade e a política e no segundo, além do café e conversa, se podia ir dar umas tacadas de bilhar no piso superior. Já na Central ia-se comer um éclair de chocolate e no Nicola do Sr. Abelha subia-se ao primeiro andar para comer uma meia torrada acompanhada por um galão depois de a Mãe ter ido ao cabeleireiro Salão Azul, mesmo em frente, escola da maioria dos cabeleireiros de hoje da nossa Cidade. Ao lado a Papelaria Cristal vendia canetas de boas marcas e lá se ia comprar a necessária régua de cálculo para as aulas de matemática do liceu.

Na Casa Amado escolhiam-se os tecidos de decoração para casa, na San Remo uma carteira e na Casa das Luvas as ditas ou outros complementos. Era sempre possível ir ver uma exposição de pintura à Galeria do Primeiro de Janeiro e, com sorte, encontrar o Mestre Mário Silva numa das suas apresentações extravagantes. E quase ao lado íamos cortar o cabelo à magnífica Barbearia Basílio com os seus enormes espelhos. Aqui coexistiam as três grandes livrarias da cidade para o mundo: a Atlântida, a Coimbra Editora e a Novalmedina.

No Último Figurino o Sr. Alfredo Coroado e o Sr. Fausto ajudavam a comprar vestuário da moda ou a escolher uma gravata de seda. Por cima, a boutique Delfieu tinha as últimas novidades mais modernas. A Loja das Gabardinas do Sr. Martins oferecia uma enorme possibilidade de escolha e o pronto-a-vestir incluía ainda ao fundo da Visconde da Luz a Nova Paris dos srs. Fonseca e Flaviano com a sua montra especial. Na Bambi no início da Rua Corpo de Deus íamos comprar as batas escolares e as sapatilhas Sanjo.

Deixando a Ferreira Borges, entrava-se na Visconde da Luz com as ourivesarias: a Patrão com o Sr. Elísio Patrão ajudado pelo Sr. Simões com ourivesaria e relojoaria incluindo a representação da Omega e em frente a Brinca igualmente com o nome da família proprietária estando quase ao lado a Santos do Sr. Santos.

O movimento de pessoas da Baixa justificava a existência do supermercado Colmeia e a Visconde da Luz fechava com a espectacular Perfumaria Galera do saudoso Sr. Ribeiro.


Fora do canal devo recordar o Carlos Camiseiro à entrada da Rua Eduardo Coelho ou “Rua dos Sapateiros” e toda a Rua Adelino Veiga ou «rua dos bazares» com o Hospital das Bonecas, o El Dorado onde o Sr.Manuel ajudava na escolha das malhas Sidney e calças de ganga de marcas variadas, o Saul Morgado que apresentava louça e vidros de todo os tipos nas galerias da cave e os bazares de Coimbra e de Lisboa que nos faziam sonhar com os comboios eléctricos e miniaturas de automóveis da Corgi Toys.

Propositadamente deixo para o fim algumas da lojas que resistiram heroicamente ao vendaval que levou tudo o que acima recordei. O Sr. Jorge Fernandes da Óptica Fernandes, o Sr. Marques da Casa dos Enxovais são queridos amigos que bem mereciam ser homenageados por uma Autarquia que defenda realmente os exemplos de cidadania, capacidade de luta por uma economia próxima e amor à Cidade. Tal como o Sr. José da Costa e o Sr. Cruz com as ourivesarias Costa e Ágata e os Braga com os seus chapéus. E porque os últimos são os primeiros, aqui presto homenagem sentida ao Sr. Cândido Carvalho e sua saudosa mulher Sra. D. Maria João da Loja das Meias (a verdadeira, a de Coimbra). Durante décadas receberam clientes sem olhar a diferenças sociais, sempre com uma simpatia e uma esmerada capacidade de acolhimento e conhecimento profissional que transformavam qualquer cliente num amigo, no que têm no filho um perfeito herdeiro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Abril de 2021

Fotos recolhidas na internet

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Marquês improvável

 


Quem o tenha visto nas tv´s depois da longa leitura do despacho de pronúncia pelo Juiz Rosa terá certamente estranhado a satisfação e sentimento de vitória evidenciados pelo ex-primeiro-ministro José Sócrates. Afinal, ele acabava de ser pronunciado para ser julgado por seis crimes, três de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos e acusado com todas as letras pelo juiz de Instrução de ter sido corrompido, embora esse crime já estivesse prescrito. Segundo as palavras do próprio juiz Rosa, e para vergonha dos portugueses, José Sócrates andou mesmo a «mercadejar a sua personalidade» enquanto era primeiro-ministro de Portugal. Embora a acusação do Ministério Público o tivesse acusado de 31 crimes e o juiz de instrução Rosa tenha deixado cair 25 deles, deve ser difícil qualificar pior a acção de um ex-primeiro-ministro.

Os dias que entretanto passaram sobre aquela inédita leitura do despacho de pronúncia, durante várias horas em directo para as televisões, deixaram assentar alguma poeira e já permitem ter algumas leituras sobre o caso difíceis de ter em cima do acontecimento.

Desde logo, o juiz Rosa retirou da pronúncia todas as acusações de corrupção. Para tal, socorreu-se de um oportuno e muito discutível a diversos níveis, desde a matéria e suas implicações até aos subscritores passando pela data, acórdão do Tribunal Constitucional que faz, relativamente a uma determinada situação concreta, logo sem estabelecer jurisprudência mas realmente passível se ser invocado, uma determinada interpretação dos prazos de prescrição nos crimes de corrupção. Claro que, dado que o MP vai interpor recurso para o Tribunal da Relação, este poderá ter uma interpretação diferente, anulando as decisões do Juiz Rosa nesta matéria. Recorda-se, a propósito, o historial do Juiz Rosa no que toca a reversões das suas decisões por parte do tribunal da Relação: nos últimos quatro anos, foram pelo menos dezassete.

O Juiz Rosa encontrou as suas melhores justificações para anular as acusações de corrupção e crimes subsequentes como os de branqueamento de capitais, enquanto adjectivava o trabalho de anos de investigadores e Ministério Público como «delirante e fantasioso». Corruptores e corrompidos passaram num ápice a vítimas. Não se diga que o trabalho do MP é isento de falhas, parece estar longe disso, mas trocar as situações não parece ser nem justo, nem favorável para a imagem da Justiça portuguesa. Aguarda-se com curiosidade saber se o Tribunal da Relação irá aceitar que as entregas de 1,7 milhões de euros pelo «amigo» a José Sócrates consubstanciavam a verdadeira corrupção, acusação que parece ser essa sim, verdadeiramente delirante, fora de toda a lógica e com pouco rigor e consistência. E falta ainda o verdadeiro julgamento, para se poder dizer que a Justiça decidiu.


A jornalista Maria Antónia Paula. mãe do primeiro-ministro António Costa, perguntava-se há poucos dias no jornal Público: «Sócrates, porquê tanto ódio?», assim virando o bico ao prego e sustentando a habitual manipulação de sentimentos e lealdades políticas de Sócrates. Está no seu direito, mas faria melhor em perguntar como é possível um partido nacional com tantas responsabilidades como é o Partido Socialista seguir e propor ao país de forma cega e sem pensar dois segundos, um político que se definia a si mesmo com um «animal feroz» e que, desde o primeiro cargo governativo até ao fim, sempre alimentou suspeitas sobre a sua honestidade (freeport, face oculta e operação Marquês). Tudo isto enquanto se acumulavam sinais sobre uma insuportável mistura entre governação e economia (PT e BES) e se atirava o país para o mais desgraçado estatuto de protectorado de que temos memória com a pré-bancarrota e a chamada da troica. E a jornalista ainda pergunta porquê tanto ódio? A cegueira política tem que ter um limite. Colocando de lado a apesar de tudo possível hipótese da síndrome de Estocolmo e sem ter que sair da família socialista, vá perguntar, por exemplo a Ana Gomes, que ela explica-lhe como centenas de milhares de pessoas se sentem ludibriadas por Sócrates e por quem com ele colaborou sem fazer perguntas, nem quando apareceram fotografias da montra da loja mais cara e exclusiva de Beverly Hills com o nome do Primeiro-Ministro de Portugal José Sócrates como cliente.

Um processo de corrupção de um ex-primeiro-ministro não pode deixar de ter contornos políticos. Dizer muito simplesmente que se deve deixar à justiça o que é da justiça e à política o que é da política é, neste caso, apenas uma prova de refinado cinismo e hipocrisia. Como é evidente, a justiça faz parte da política. E, se os agentes da Justiça que em Portugal trabalham árdua e diariamente contra a corrupção vêem sistematicamente abrir-se os mais diversos alçapões para safar políticos corruptos, isso deve-se sobretudo, não aos princípios penais gerais, mas aos pormenores que na legislação são metidos sem vergonha pelos principais partidos. E os alçapões permitem ir atrasando os processos com é visto neste: Sócrates foi preso há sete anos e só agora saiu uma acusação, e mesmo essa com os problemas que se vêem.

Mas, se há algo que é verdade em democracia, é que o que pode prescrever são os políticos. Não a Justiça.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de Abril de 2021

Fotos retiradas na internet