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O fenómeno que
constitui a candidatura de Donald Trump às eleições presidenciais americanas
tem sido objecto das mais diversas análises políticas, quer abordando o
fenómeno populista que se lhe encontra subjacente, quer tentando compreender
como o partido Republicano se deixou transportar para esta candidatura.
Mas há outro
aspecto da candidatura de Donald Trump e do seu discurso que vai muito para
além disso e tem a ver com a sua relação com a verdade. De facto, o candidato
republicano faz constantemente afirmações bombásticas que não têm nada a ver
com a realidade dos factos, mas que produzem ondas de choque sociais e que, a
certa altura, parecerão evidências a muitas pessoas que, ou já o apoiam, ou
acabam a apoiá-lo. O exemplo da afirmação de que Obama é responsável pela
criação do “estado islâmico” é paradigmático. Questionado sobre a afirmação e
confrontado com o facto de Obama ser contra o EI e até lutar contra ele Trump,
longe de se retratar, manteve a afirmação e ligou-a com a saída das tropas
americanas do Iraque.
O uso da mentira na
política não é novo, a profissão de político mentiroso deve mesmo ser a segunda
profissão mais antiga do mundo, como se costuma dizer. A própria utilização de
mistificações, ou aquilo que hoje em dia chamamos mitos urbanos também é bem
conhecida da História, como a utilização dos famosos falsos “protocolos de
Sião” pelos nazis como justificação para os ataques aos judeus. As redes
sociais da internet são um meio poderoso para o alastrar da mentira e da
manipulação política, já que as pessoas raramente se dão ao trabalho de ir
verificar as fontes, a veracidade ou até a data daquilo que é apresentado.
Aliás, os próprios “protocolos de Sião” ainda por aí circulam nas redes
sociais, havendo muita gente que acredita naquilo.
Mas há um fenómeno
que está a alastrar na política a nível mundial e a que David Roberts chamou
“pós-verdade”. Trata-se construir todo um edifício discursivo político sem
qualquer relação com a verdade.
A utilização da
técnica da “pós-verdade” traz imensos problemas. Ao abordar esta problemática,
a revista “Economist” de há duas semanas sublinha que “a alteração
relativamente às habituais mentiras dos políticos reside em que a verdade não é
falsificada ou retorcida, mas passa a ser de importância secundária”. Como
mostra a campanha de Donald Trump, os sentimentos passam a substituir os
factos. Eis por que os opositores têm tanta dificuldade em combater os
políticos da “pós-verdade”: ao fazê-lo, colocam-se no campo deles e a prova de
que estão errados torna-se um caminho espinhoso e armadilhado, de onde fugiu
qualquer racionalidade.
A campanha do
chamado “brexit” é outro bom exemplo da utilização da “pós-verdade” pelos
defensores da saída do Reino Unido da União Europeia. Por exemplo, garantiram
aos ingleses, e ficou provado que estes acreditaram, que o seu país pagava 350
milhões de libras por semana à União Europeia, que poderiam ser gastos no
Serviço Nacional de Saúde britânico que atravessa graves problemas de
financiamento. O efeito sentimental conseguido pela imagem do “desvio” do
dinheiro dos burocratas europeus para o serviço de saúde foi completo, ainda
que não tivesse qualquer relação com a realidade. Hoje em dia muitos britânicos,
que não foram votar ou que o fizeram pela saída, estão arrependidos por
concluírem que foram miseravelmente enganados, mas agora é tarde. Como somos
sempre muito rápidos a copiar o mau, este problema também já está entre nós.
Quando há poucos anos um ex-primeiro ministro começou a acusar a oposição de
usar uma “narrativa”, não estava a fazer mais do que informar toda a gente que
o seu discurso constituía ele próprio uma efabulação à volta de pressupostos
sem qualquer relação com a realidade. Difícil de desmontar, essa técnica
política veio a ter, como bem sabemos, consequências pesadíssimas para todos
nós.
Claro que, como se
vê, a realidade acaba sempre por fazer o seu aparecimento com toda a força; já
Abraham Lincoln dizia ser possível enganar a todos por algum tempo, bem como
enganar alguns por todo o tempo, mas ser impossível enganar toda a gente o
tempo inteiro. Mas, entretanto, já foram provocados muitos estragos embora os
próprios inventores da mentira continuem, com toda a certeza, a manter o seu
discurso, sempre acusando outrem das consequências.
Um dos maiores
estragos será certamente o minar da confiança dos cidadãos nas instituições
democráticas. E aqui não podemos ter contemplações perante este tipo de
exercício da política: não é por ser “o nosso mentiroso” isto é, o que ajudámos
a eleger pelo voto que uma mentiroso deixa de o ser. A nossa obrigação de
cidadania é não calar a mentira total e denunciá-la, custe o que custar. Até
porque a verdade existe.