segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sinais dos Açores

 


Um conhecimento dos Açores com alguma profundidade foi um dos bons resultados da minha passagem pela Armada Portuguesa no cumprimento do Serviço Militar Obrigatório que aconteceu com Portugal em paz, isto é, depois do 25 de Abril. Posso, pois, afirmar que conheço todas e cada uma das nove ilhas do arquipélago e que guardo para a vida algumas das experiências por que lá passei, desde comer um verdadeiro cozido das Furnas, o que hoje já não sucede, até apanhar uma tempestade no mar entre o Faial e as Flores, daquelas mesmo a sério, com ondas de mais dez metros. Conhecimento que me transformou num verdadeiro apaixonado pelas ilhas do meio do Atlântico sabendo contudo que, se os Açores são uma maravilha da Natureza, a vida lá pode tornar-se muito difícil.

Nos últimos dias falou-se muito dos Açores, mas por motivos que têm pouco a ver com as paisagens e sim com as opções políticas dos açorianos nas últimas eleições regionais. O PS governou os Açores nos últimos 24 anos, que se seguiram a um período em que o PSD governou durante 20 anos. Nestas eleições regionais de 2020, o PS foi o partido mais votado mas, estranhamente, não tentou formar governo e submetê-lo à aprovação da AR como seria natural. Foi o PSD-Açores que tratou de formar governo por coligação com o CDS e PPM regionais e apoio parlamentar da Iniciativa Liberal e do Chega. Parece que, depois da geringonça de 2015, deixou de ser natural respeitar a vontade dos eleitores ao votarem mais nuns partidos do que noutros, para os parlamentos encontrarem soluções maioritárias sem ligarem a esse aspecto crucial na democracia.

Em consequência, a atenção mediática voltou-se para o facto de o PSD ter negociado com o Chega o apoio parlamentar para garantir a governação da Região Autónoma dos Açores. E, na verdade, trata-se de um aspecto crucial da vida política nacional, já que anuncia a possibilidade de um acordo futuro semelhante, a nível nacional. Pessoalmente, nunca concordei com a formação de governos liderados por partidos que ficam em segundo lugar nas eleições. É perfeitamente legal, mas deita para o lixo a vontade expressa nas urnas pelos eleitores. E, se tive essa posição nos inícios de 2016, mantenho-a agora. Como vimos em Portugal nos últimos 5 anos as consequências políticas deste tipo de governos são óbvias já que a pura manutenção no poder substitui a governação de fundo. Por outro lado a discussão pública foi aprisionada por uma retórica populista esquerdista, enquanto o país se foi paulatinamente empobrecendo em relação aos outros países da União, dependendo cada vez mais de fundos europeus para tudo resolver como se vê pela fraca resposta do Estado aos problemas sanitários e económicos da pandemia: não há dinheiro!

Além da discordância de princípio, resta o acordo com o Chega. O facto de o PS se ter metido nas mãos do PCP e do BE não serve de justificação para o PSD ir fazer o mesmo com o Chega. Os partidos de centro, sejam de esquerda ou de direita, não devem misturar-se com partidos populistas, sob pena de degradarem a democracia, dado que os discursos desses partidos deixam de ser tidos como extremistas, passando a ser integrados na discussão política normal, com consequências futuras nefastas para a democracia. É a isto que se pode chamar, com toda a propriedade, chocar o ovo da serpente.

A discussão sobre diminuir radicalmente o Rendimento Social de Inserção nos Açores é, sob este ponto de vista, exemplar. A percentagem de beneficiários RSI relativamente à população residente com mais de 15 anos é de 10,2%, enquanto no Continente é de 3%. Mas estigmatizar quem recebe RSI que é uma faixa de população pobre é um erro, além de ser uma política indecente, porque não é origem do problema e sim consequência. É preciso olhar para as pessoas e criar condições para que o RSI não seja necessário. Podia antes referir-se que o nº de pessoas por médico é, nos Açores, 278 quando em Portugal é de 186. Ou que o PIB per capita é de 17.514 e em Portugal de 19.827 e que o poder de compra é 87,3% do de Portugal. Devemos também notar que a percentagem de alunos com 15 ou mais anos sem ensino secundário é de 70% contra 58% em Portugal; que a taxa equivalente com ensino superior é de 11% contra 20% em Portugal e ainda que a taxa de abandono escolar precoce é de 27% contra 11% em Portugal como um todo.

É nestes aspectos que têm a ver com a boa ou má governação que o PSD deveria centrar as suas preocupações e não nos desgraçados que recebem RSI autorizando que um partido como o Chega influencie as suas políticas, pelo menos na linguagem. O simples facto de acordar com o Chega a diminuição do RSI é uma cedência inadmissível para um partido social-democrata, por se tratar de uma questão populista e por trazer para a governação um resultado de políticas e não as suas causas.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Novembro de 2020

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