segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A UNIVERSIDADE E A URBE

 


Quando se observa a evolução de um determinado património ao longo de séculos ou mesmo dezenas de anos, não se pode correr o risco de usar lentes ideológicas que distorçam a realidade do que aconteceu. E esse olhar independente é mesmo necessário para se ver o conjunto e não apenas um ou outro pormenor histórico. O que, na minha perspectiva, deve ser feito relativamente à forma como a principal instituição de Coimbra, a Universidade, se tem integrado na Cidade sob o ponto de vista urbanístico.

Os dois novos pólos universitários surgiram nos últimos 30/40 anos como uma necessidade imperiosa de a Universidade ultrapassar o espartilho físico da Cidade Universitária instalada na velha Alta de Coimbra e que, com o explodir do ensino universitário dos anos 70, era já incapaz de dar resposta à procura.

Contudo, quer o pólo 2 junto ao Rio Mondego na zona da Portela, quer o pólo 3 junto aos HUC são exemplos de como novos e importantes equipamentos para a Cidade e para o País podem ser desenvolvidos com falta de planeamento, eventualmente pela urgência de correr atrás de financiamentos europeus. 


Em vez de se terem elaborado e aprovado planos urbanísticos que integrassem devidamente os projectos num planeamento adequado da cidade, foram-se fazendo estudos sem valor legal que foram servindo de mera orientação alterável a qualquer momento em função de necessidades pontuais.

O pólo 2 ainda hoje, tantos anos depois de entrar em funcionamento, tem edifícios inacabados e, os espaços exteriores que deveriam ser ajardinados ou pelo menos arranjados como zonas de lazer, mais parecem abandonados. Os próprios arruamentos terão um estatuto semelhante ao público para efeitos de utilização rodoviária incluindo transportes públicos, mas sem haver uma definição clara da respectiva propriedade. A prevista nova zona desportiva não passou do papel. A Cidade merecia, senão mais, muito melhor. O que era para ser um campus universitário modelo ficou muito além disso.

Quanto ao pólo 3, do ponto de vista urbanístico, é necessário um grande esforço para deixar os adjectivos no tinteiro e ser-se o mais objectivo possível. Desde logo, Coimbra mostra a Lisboa como é possível meter o Rossio na Betesga, algo que nem o Marquês de Pombal foi capaz de fazer na sua notável reconstrução da Baixa de Lisboa após o terramoto. Com a agravante de em Coimbra não ter havido terramoto, tendo a intervenção começado do nada naquele monte vizinho dos hospitais. E a Universidade continua a meter lá mais edifícios e mais edifícios. A praceta central é pequena, tanto em dimensão como em qualidade de materiais. Há poucos dias e ao fim de tantos anos a Autarquia lá pôde, enfim, aprovar um loteamento para se tentar encontrar um procedimento para “agarrar” aquilo de um ponto de vista registal, já que urbanisticamente o não pode fazer. Os acessos viários estão previstos sabe-se lá para quando, mas não seria possível alargar aquela quelha que parte da rotunda Mota Pinto já que, se não conseguem ultrapassar o obstáculo da moradia, o lado das antigas bombas de combustível está ali disponível há anos?


As obras universitárias em Coimbra parecem ter sido alvo de uma maldição antiga. Desde a Rua da Sofia/Sabedoria que foi aberta com medidas duplas do arruamento central da Sorbonne para receber a Universidade com dignidade, mas que nunca serviu para esse fim, tudo parece poder acontecer.

Felizmente, o Paço Real onde nasceram quase todos os reis da I Dinastia e que o rei espanhol Filipe vendeu à Universidade, escapou até hoje às agressões patrimoniais. Já a velha Alta residencial que lhe era vizinha desapareceu para sempre para ser substituída pelo conjunto de gigantescos edifícios universitários a que hoje se chama pólo 1. Uma certa ideia de progresso que grassou pela Europa nos primeiros decénios do séc. XX serviu de base para a demolição da área residencial do cimo da dita «colina sagrada». Hoje parece ser pacífico que, em termos patrimoniais, culturais e sociológicos se tratou de um crime. Ainda há quem pense que foi um dictat político externo à Cidade, quando esta acolheu esta intervenção de braços abertos, excluindo curiosamente Bissaya Barreto que nunca a aceitou. Como Nuno Rosmaninho mostra na sua obra recentemente publicada «Coimbra e o Imaginário – a cidade entre o romantismo e o Estado Novo», cuja leitura recomendo, mesmo as forças de oposição e progressistas só nos anos 60 mudaram de posição e se começaram a manifestar contrárias à demolição da velha Alta. As obras duraram até 1975 quando foi terminada a construção do edifício das Ciências e parte delas ficaram por executar, nomeadamente os pórticos previstos entre edifícios, dado que o Colégio de S. Jerónimo nunca foi demolido. Curiosamente, todo o conjunto está hoje classificado pela Unesco como Património Mundial, incluindo a própria e esquecida Sua da Sofia.

A Cidade com os seus órgãos representativos, mesmo em democracia, tem sido sempre confrontada com a realização de obras que marcam a urbe em definitivo definidas por outros, sejam pelo Governo sejam pela Universidade. Quando muito vai atrás a apoiar agradecida ou emite pareceres necessários para obter financiamentos externos. Penso ter chegado a altura de estes assuntos de cidadania tão importantes para o futuro da Cidade serem debatidos, fora de campanhas eleitorais, com liberdade e conhecimento, porque é o futuro urbano digno e qualificado de Coimbra que assim o exige.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Janeiro de 2021

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