Palavras, leva-as o vento, é costume dizer-se. Será, quase de certeza, o destino das palavras desta, como de outras crónicas. Mas as palavras marcam. Marcam quem as diz, quem as deixa escritas e até quem as lê, ainda que nem sempre disso se dê conta. Palavras difíceis ditas pelo médico ao doente em estado grave. Palavras ternas ditas entre os amantes. Palavras incompreensíveis ditas pela mãe ao seu bebé, que só ele entende. Palavras puras e significantes ditas pelos poetas. Palavras entusiasmantes ditas pelos políticos em estado de graça e palavras enganadoras de todos os manipuladores.
As palavras nunca são vãs.
De vez em quando há palavras que,
de esquecidas ou quase ignoradas, passam repentinamente da sua obscuridade para
a luz do espaço público: a «resiliência» da economia ou de pessoas, está agora
omnipresente sem que, todavia, grande parte das pessoas saiba qual o seu
significado. Outras há que surgem para ocupar um espaço enorme, completamente
imerecido, nos discursos políticos e mesmo sociais: o «implementar um projecto»
ou considerar como «espectável» que um determinado candidato ganhe as eleições.
Ultimamente passou a ser necessário que as pessoas construam pontes, seja na política, seja noutra actividade qualquer que não na engenharia já que, essa desde há muito o aprendeu a fazer. Pontes físicas são passagens abertas entre as diferentes margens de um rio. Depois de feitas, permitem a passagem e a ligação entre comunidades antes separadas.
Normalmente. Porque, às vezes, até aí os piores instintos dos homens se manifestam, como a lembrar donde provimos e de como é necessário termos sempre consciência disso para construirmos sociedades que respeitem todo e cada um como igual ao outro.
Foi há menos de trinta anos que dois jovens namorados, ambos com 25 anos, ele Boško Brkić um sérvio da Bósnia e ela Admira Ismic uma muçulmana da Bósnia foram cobardemente assassinados a meio da ponte Vrbanja em Sarajevo, durante a guerra da Bósnia. Foi às 17 horas do dia 19 de Maio de 1993. E os seus corpos ali ficaram abraçados na morte durante sete dias, que ninguém tinha coragem de os ir buscar, arriscando-se a ser igualmente alvo dos atiradores furtivos.
Uma ponte pode, assim, significar exactamente o oposto da sua definição. Para além de estabelecer contactos físicos, o que verdadeiramente importa é estabelecer laços. O que significa acrescentar afecto, o que faz toda a diferença.
Estabelecer laços significa, muito para além da racionalidade pura da construção de pontes, dar-se ao outro, procurar no outro o melhor que nos possa dar, igualmente. E, a partir daí, estabelecer relacionamentos estáveis e produtivos. Isto, tanto entre simples pessoas, como entre comunidades, independentemente do seu tipo e da sua dimensão.
António Damásio, um neurocientista português com créditos firmados a nível mundial, desde o seu livro «O Erro de Descartes» que tem mostrado como a descoberta da consciência necessita do saber e do sentir. Só por si a inteligência raramente consegue descobrir novos caminhos ou explicações, necessitando da empatia que traz associada o entusiasmo pelo que se faz para verdadeiramente fazer progredir o conhecimento humano.
As relações humanas precisam de empatia, mesmo de afecto pelo outro, para serem produtivas, muito para além de estabelecer pontes, necessárias mas não suficientes, como prova a falta de resultados do estabelecimento de regras a nível mundial, sejam a Convenção dos Direitos Humanos ou mesmo os Direitos da Criança. A capacidade de estabelecer laços com o outro, seja quem for, depende muito de nós e é cada vez mais necessária, num mundo crescentemente dominado por uma economia subterrânea patrocinada e desenvolvida pelas chamadas redes sociais que, ao contrário do seu nome, promovem o isolamento e a quebra de verdadeiros laços inter-pessoais. E não esqueçamos que são as palavras, ditas e escritas, que melhor promovem o estabelecimento de laços.
Texto publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Outubro de 2021
Imagens recolhidas na internet
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