Escrevo esta crónica a 1 de Outubro. Crónica que se me impôs e obrigou a guardar para outra oportunidade aquilo que contava escrever esta semana. Ao dar hoje o passeio matinal com o fiel companheiro de quatro patas, passei por uma senhora jovem que levava o seu menino para a escola pela mão. O garoto ia contente e seguro, mas o que me chamou a atenção foi que a mãe trazia outra criança na barriga, embora a gravidez ainda não fosse muito avançada. Lembrei-me de quando eu próprio ia para a escola em criança, lembrei-me dos meus filhos e também das netas e neto de quem, graças à internet, quase todos os dias tenho a felicidade de receber fotografias das suas idas para a escola. Poucos metros depois, passei por outra senhora grávida, duas heróicas mulheres que contribuem para anular a dramática falta de nascimentos dos dias de hoje.
E foi aqui que esta crónica se me impôs. Sem qualquer razão, apercebi-me que o tempo estava fresco, mas agradável. À minha volta, pessoas e muitos jovens entre elas, deslocavam-se para o trabalho ou para as aulas. De repente parecia haver algo no ar que transpirava felicidade, a pandemia aparentemente esquecida. E, sem que possa imaginar a razão, dei por mim a cantar interiormente uma música. E a música era «Gracias a la vida» da Violeta Parra que, apesar do seu destino triste, nos deixou esta mensagem maravilhosa: «Gracias a la vida que me ha dado tanto - Me ha dado la risa y me ha dado el llanto - Así yo distingo dicha de quebranto».
E dei por mim a tomar consciência de que o primeiro de Outubro é o Dia Mundial da Música que, por tantas cidades do mundo é motivo de celebrações festivas em concertos de salas, mas também pelas ruas, quem dera que por cá acontecesse o mesmo.
E tive vontade de partilhar aqui a particular felicidade que foi assistir ao concerto fantástico que teve lugar, há dois dias, no cenário espectacular das ruínas de Conimbriga, contextualizado de forma brilhante pelo Físico Carlos Fiolhais que também apresentou os compositores e as obras que se iam ouvir. O programa, pelo menos no que me diz respeito, dificilmente poderia ser melhor, já que todas e cada uma das peças apresentadas me diz intimamente qualquer coisa. Não tendo eu, com grande pena, formação musical, não deixa de ser surpreendente como o cérebro guarda por completo obras musicais de forma a ir reconhecendo todas as passagens, mas também os contextos e situações em que anteriormente foram ouvidas. O programa incluiu, e espero não me esquecer de nada, a «Fanfarra para o homem comum» de Aaron Copland, a «Rhapsody in blue» de George Gershwin, as «Polovtsian Dances» do Pince Igor de Borodin, a «Balada de Sacco e Vanzetti» de Enio Morricone e Joan Baez, o «Va pensiero» conhecido como o coro dos escravos hebreus da ópera Nabucco de Verdi e, a fechar, a «Abertura 1812» de Tchaikovsky. O leitor que me perdoe por lhe ter, eventualmente, feito criar água na boca ao expor o programa, mas se não foi ao concerto a responsabilidade é inteiramente sua, já que foi anunciado e o acesso até foi gratuito. E o público apreciou e delirou mesmo com o concerto que foi realizado pela Orquestra Clássica do Centro aqui dirigida pelo Maestro Sérgio Alapont, tendo Miguel Borges Coelho sido o pianista solista interpretando Gershwin, contando ainda com o excelente coro Coimbra Vocal nas obras de Morricone e de Verdi.
Neste recomeço da vida «normal» depois de ano e meio de vivência colectiva estranha devido à pandemia, realço o facto de a Orquestra Clássica do Centro ressurgir com uma qualidade que a coloca seguramente ao lado das melhores orquestras portuguesas, demonstrando ainda capacidade organizativa e logística para montar um espectáculo como o apresentado em Conímbriga. Não sei se Coimbra merece ou não albergar em si tal instituição, o facto é que desta forma se coloca ao nível das cidades europeias que não prescindem dessa oferta cultural. Vantagem enorme em termos de candidatura a Capital Europeia da Cultura, disso me parece não haver qualquer dúvida.
E é por a vida ser maravilhosa e merecer ser vivida na sua plenitude que a cultura, abrangendo música e poesia, pode e deve ser uma arma poderosa contra a apatia e mesmo desesperança que tanto tempo de confinamento e esfriamento de relacionamentos provocou. Basta lembrar Manuel Alegre cantado por Adriano:
Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia canções no vento que passa
Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Outubro de 2021
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