segunda-feira, 10 de outubro de 2022

As Pessoas


São por vezes pequenos simples momentos de realidade quotidiana que, mesmo apesar da sua aparente banalidade, inesperadamente nos transmitem emoções com uma força que não imaginávamos.

Num dia destes resolvi meter-me no carro de manhã cedo e ir por estradas desta minha Beira que me viu nascer e viver durante grande parte da vida e que amo de uma forma estranha e profunda. O objectivo era ir verificar o estado de uma casa de família na Aldeia de S. Francisco de Assis situada já na Beira Baixa, concelho da Covilhã, nos contrafortes sul da Serra do Açor, bem perto da Serra da Estrela. Para lá chegar, as estradas com muitas curvas encontram-se hoje em bom estado, ou mesmo muito bom, com excepção de um pequeno troço a seguir à barragem de Santa Luzia, já no concelho da Covilhã. Para quem não conhece esta barragem, aqui fica o desafio para uma visita, já que se trata de um local de beleza magnífica pela força transmitida pela Natureza, a que se junta um bom aproveitamento com parque de merendas, restaurante, bar e até uma piscina feita no interior da albufeira, com uma rede a proteger os banhistas. Ao alto da Pampilhosa da Serra, na nova estrada que serve o aeródromo dedicado ao combate a incêndios, a surpresa de um miradouro feito à maneira moderna, de forma a propiciar belas fotografias, para além de cadeiras que permitem, de forma confortável, apreciar uma paisagem de cortar a respiração. Curiosamente, e de forma de certa maneira algo surpreendente, as antigas aldeias dispersas pelos montes aparecem com as casas na sua maioria recuperadas, o que deverá ter razões que merecerão alguma análise posterior.

Na Aldeia de S. Francisco de Assis, antiga Bodelhão, é possível verificar a mesma situação, com bastantes edificações recuperadas. O que se torna estranho, dado que a larga maioria das casas não é ocupada em permanência, pelo abandono generalizado para outras paragens, incluindo emigração para a Europa e Américas. Para se ter uma ideia da actual e profunda desertificação, a população da freguesia é actualmente de 490 moradores, quando era de 2.508 em 1960. Estes números incluem o lugar da Barroca Grande, principal centro do couto mineiro das Minas da Panasqueira, o que significa que o número de habitantes da Aldeia é ainda mais reduzido, sendo a sede da Junta de Freguesia e o Centro Social Paroquial que apoia a terceira idade as principais (praticamente únicas) fontes de actividade.


Atingida a Aldeia que, apesar da distância a Coimbra ser de apenas cerca de 100 km, parece estar noutro mundo fiz a visita à casa da família o que aconteceu pela primeira vez sem companhia. Habitualmente vou com filhos e mesmo netos, o que não sucedeu desta vez. Razão para que o choque das memórias tenha desta vez sido fortíssimo. A recordação dos pedaços de vida feliz ali vividos desde tenra idade surge de forma estranha perante as paredes que já não abrigam ninguém, porque quem lá viveu já partiu há muito. E a consciência de que as memórias dessas pessoas, das situações vividas em comum, dos afectos, tudo isso continua apenas dentro de nós e connosco desaparecerão um dia. Ainda que se regresse aos locais onde se viveu, tal não deixa de ser verdade.

O que significa que, ao fim e ao cabo, as pessoas é que importam na nossa vida. Em tempos, ouvi um famoso Físico afirmar que muitas vezes o Homem tem o desejo de descobrir uma máquina que permita viajar no tempo, quando essa máquina já existe, na forma dos nossos filhos, netos e por aí fora.

Quando nos defrontamos com as nossas memórias e o passado, feliz ou menos feliz, regressa às nossas mentes podemos tomar a consciência de que somos apenas um elo numa corrente muito antiga e que esperamos ainda venha a durar muito tempo. E que, de facto, aquilo que verdadeiramente importa neste mundo são as pessoas e as relações que somos capazes de construir. Muito para além de paredes mais ou menos ricas e de bens materiais que hoje poderão parecer importantes, mas que no futuro alguém observará como meras curiosidade de um tempo que já foi.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Outubro de 2022

Fotografias da minha autoria 

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