Muitos amigos me perguntam frequentemente onde vou buscar inspiração para escrever uma crónica semanal durante tantos anos sem falhar, e já lá vão mais de 17. Visto de fora pode, de facto, parecer uma dificuldade. Na realidade, vista de dentro, a situação é muito diversa. Porque as crónicas acabam por ter um fio condutor que às tantas diz mais sobre o autor das linhas do que sobre cada um dos assuntos abordados em já quase um milhar de semanas. E, por outro lado, as crónicas como que ganham vida própria de modo que aquilo que se pretendia comunicar chega mesmo a perder espaço perante considerações laterais ou adjacentes que sempre surgem e levantam outras matérias interessantes como quem puxa um fio e atrás dele vem sempre outro agarrado. Por vezes torna-se mesmo necessário fixar o rumo para que os “empurrões” laterais não nos levem a um porto diferente daquele onde se pretendia chegar.
Toda esta introdução vem a propósito da crónica da semana passada que, se o estimado leitor teve a paciência de a ler, deve recordar que tratava da constatação pessoal de que o país me parece navegar sem rumo, por não ter objectivos claros a atingir. E fiz uma comparação com tempos em que os portugueses mostraram ser capazes de estar à frente do seu tempo, quer em gestão de projectos extremamente complexos, como ainda em estar na vanguarda do conhecimento científico. Tudo para «dar novos mundos ao mundo» e transformar a vida no nosso planeta para sempre através da primeira globalização. E noto agora que lá está de novo a crónica a tomar uma direcção não pretendida. Terei mesmo de regressar futuramente a este tema, já que não se pode deixar de notar que a saída dos europeus desta ponta ocidental para o mar no século de quinhentos se tenha precisamente seguido a «apertos» sucessivos da Europa pelo lado oriental. Primeiro pela expansão mongol entre 1000 e 1250 e depois pelos otomanos que conquistaram Constantinopla em 1453, no que habitualmente se considera o início do fim da Idade Média fixado em 1492, quando foi descoberta a América e os muçulmanos foram finalmente expulsos da Península Ibérica.
O que é facto é que na crónica anterior referi apenas de forma lateral os nomes de Abraham Zacuto e de Pedro Nunes como cientistas muito importantes para o sucesso da saga dos “descobrimentos portugueses”. De facto, a sua importância histórica vai muito para além disso. Zacuto terá nascido em Salamanca, tendo-se refugiado em Portugal depois da promulgação do decreto dos reis católicos obrigando os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. Esteve ao serviço de D. João II mas a sua estada entre nós durou apenas seis anos já que o rei D. Manuel, para obter autorização para casar com D. Isabel, filha dos reis católicos, promulgou também a conversão ou expulsão dos judeus de Portugal, tendo Zacuto seguido de novo o caminho do exílio. Assim fugiu à tragédia que se seguiu em Lisboa ao casamento de D. Manuel que nos deveria ainda hoje encher de vergonha. Já Pedro Nunes, embora tivesse ascendência judaica, nunca foi importunado, talvez devido ao seu enorme prestígio, já que em 1544 lhe foi entregue a cátedra de matemática da Universidade de Coimbra. Contudo, destino diferente tiveram os seus netos que foram presos, torturados e condenados por judaísmo pela Inquisição dirigida pelo Inquisidor-mor cardeal infante D. Henrique.
A mesma sorte de Pedro Nunes acabou por ter o mais ilustre médico do seu tempo, Garcia de Orta, seu conterrâneo e conhecido, que embora sendo cristão-novo, logrou morrer na Índia sem ser directamente incomodado pelo tribunal do Santo Ofício local. Já, logo depois da sua morte, a sua irmã Catarina foi condenada por judaísmo e queimada viva em 1569 num auto-de-fé. A sanha contra os judeus era de tal ordem que até os ossos de Garcia da Orta viriam a ser desenterrados e queimados em 1580.
O significado profundo do tratamento dado aos judeus naqueles tempos não foi apenas religioso, indo muito além do sofrimento indescritível de cada um dos homens, mulheres e crianças de ascendência judaica perseguidos pela sua ascendência. O ódio então manifestado teve a sua primeira e mais sangrenta manifestação pública no banho de sangue do massacre que durou três dias em Lisboa em Abril de 1506, mas foi-se mantendo nos 285 anos que durou a Inquisição portuguesa.
A perseguição e expulsão dos judeus teve consequências que perduram, já que assim saíram do país elites de áreas as mais diversas desde a economia e finança até à ciência, com consequências óbvias num atraso atávico de que padecemos. Para além de uma aversão social algo subterrânea que podemos, sem dificuldade, ainda nos dias de hoje ver aparecer à tona de água e não apenas contra judeus.
De vez em quando, estas crónicas suscitam críticas sempre amigas ou mesmo comentários pertinentes. Assim, esta crónica de hoje é dedicada ao meu querido Amigo e Camarada Carlos Alberto Maia Teixeira que sistematicamente tem a caridade de me orientar nas águas tantas vezes tormentosas da escrita e da opinião tornada pública.Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Março 2023
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