segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

O poder, como direito natural

 


Como se sabe, um regime democrático não se resume à existência de partidos e à realização de eleições livres. É necessário, para que uma Democracia funcione, que se verifique uma verdadeira alternância democrática e que o sistema preveja uma série de contrapesos que equilibrem as relações entre a maioria que governa e os partidos minoritários que constituem a chamada oposição. E, no nosso sistema constitucional, é absolutamente fundamental que o poder legislativo/governativo a Justiça e a presidência da República sejam completamente independentes e com possibilidade real de exercer as suas funções. Quando se verifica a existência de vários partidos, mas com um deles permanentemente maioritário, como aconteceu no México durante muitos anos, o regime deixa de respirar por desaparecerem os contrapesos e, mais tarde ou mais cedo, deixa de ser democrático. Foi o que, de certa forma, aconteceu entre nós durante a Primeira República em que o partido Republicano dominava de tal forma a governação do país que em poucos anos se abriu o caminho para uma ditadura militar a que se seguiu a ditadura do Estado Novo que só terminou com o 25 de Abril de 1974.

Tendo em conta o que acima fica dito, verifica-se que Portugal está a passar por uma situação cuja delicadeza fundamental não pode ser escamoteada e que se situa para além da luta política partidária pré-eleitoral.

O partido Socialista teve a responsabilidade governativa do país, como resultado da livre escolha do Povo, durante 21 anos dos últimos 28 anos, sendo que em quatro dos outros 7 anos estivemos sem verdadeira soberania, entregue a uma troika. Se ganhar as próximas eleições, poderá ser poder durante mais quatro ou mesmo oito anos, o que é possível atendendo à chuva de dinheiro europeu dos próximos anos, que se cifra actualmente em um milhão de euros por hora, vinte e quatro horas por dia, 365 dias por ano.

Vamos ter eleições em Março porque o Primeiro-Ministro se demitiu por problemas com a Justiça relacionados, sabe-se agora, com a suspeita judicial de ter praticado o crime de prevaricação ao ser aprovada em Conselho de Ministros o que alguém já chamou de “lei malandra” que poderia favorecer determinada entidade privada, só parada pela acção do Presidente da República. Para apimentar a questão, não se deve esquecer que no dia seguinte à demissão do Primeiro-Ministro, o país assistiu atónito à descoberta, pelas autoridades judiciais, de mais de 75.000 euros em dinheiro vivo escondido em diversos envelopes e caixas no gabinete do Chefe de Gabinete do Primeiro-Ministro.

Há poucos dias o PS realizou o seu Congresso que se seguiu à eleição do novo Líder, situação absolutamente normal em Democracia. O que já não o será tanto foram os ataques que lá foram notórios à Justiça e ao Presidente da República. António Costa e alguns congressistas acenaram mesmo com uma teoria da cabala segundo a qual estariam a ser vítimas de conspiração por parte daquelas duas Entidades. Claro que têm toda a liberdade de o fazer, não podem é pensar que estão isentos de crítica ao fazê-lo. E essa crítica, que também é livre, não pode deixar de sublinhar que esta situação se verifica após tantos anos de governação com maioria absoluta ou com apoio parlamentar que proporcionou um domínio praticamente completo do aparelho de Estado com todas as consequências que isso acarreta.


Os socialistas não pararam um momento para reflectir por que raio de razão o Presidente Marcelo, que os apajou durante tantos anos, e a PGR Lucília, por eles escolhida, se haveriam de aliar para os combater. Nem se lembraram de como, em 2009 note-se, reelegeram Sócrates como líder com quase 100% dos votos dos congressistas. Só se encontraram perante a evidência clara e cristalina de que os outros poderes institucionais se uniram em conluio para lhes roubar o poder, certamente seu por direito natural.

Mas não é coincidência que um partido que está há tantos anos no poder resolva achar que é objecto de ataque conspiratório por parte dos dois únicos Órgãos Constitucionais de Soberania que não domina: Tribunais e Presidente da República. Lamento que esta constatação seja feita precisamente num período pré-eleitoral, podendo facilmente ser confundida com posição partidária. Não o é, em absoluto, mas a meu ver trata-se de matéria suficientemente séria para não se calada, precisamente neste momento.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Janeiro de 2024

Imagens recolhidas na internet

Sem comentários: