terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Portugal e as suas disfunções


António Damásio é, certamente, o cientista português mais conhecido internacionalmente sendo, como neurocientista, de certeza o mais notório a nível mundial. Licenciado e doutorado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, exerce desde há muitos anos a sua actividade de Professor e Investigador em universidades nos EUA, actualmente na Universidade da Califórnia Sul.

Apesar da sua área de investigação estar muito longe de poder ser considerada próxima de conhecimento da generalidade das pessoas comuns, conseguiu uma divulgação dos resultados do seu trabalho, através da publicação de diversos livros que conheceram grande sucesso. Pessoalmente, lembro-me bem do interesse suscitado pelo livro “O Erro de Descartes” em que, demonstrando haver uma íntima relação entre razão e emoção, veio alterar toda uma ideia estabelecida da capacidade da razão resolver só por si as questões que se nos colocam. Para além dessa obra, é autor de outros livros, de que é normalmente salientado o "Ao encontro de Espinosa".

Pelo seu trabalho original e explorador de novos caminhos para a compreensão do trabalho do cérebro humano, António Damásio recebeu numerosos prémios de que se salientam o Prémio Pessoa e o Prémio Príncipe das Astúrias em Espanha, tendo sido distinguido como Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada em 1995. É indiscutível ser um dos nossos compatriotas mais notáveis e merecedor da nossa maior consideração.

Após a sua eleição como Presidente da República há oito anos, Marcelo Rebelo de Sousa convidou António Damásio para membro do Conselho de Estado dentro da sua quota pessoal de cidadãos, cargo que exerceu desde então até há poucas semanas.

Como tem dupla nacionalidade e a sua actividade profissional é exercida, há largas dezenas de anos, noutro país António Damásio entendeu, e só pode ter a nossa compreensão, que não estaria obrigado a entregar no Tribunal Constitucional uma Declaração de Património e Rendimentos. Deve lembrar-se aqui que ser Conselheiro de Estado não significa, em Portugal, que se receba qualquer vencimento, havendo lugar apenas “ao reembolso das despesas de transporte, público ou privado, que realizem no exercício ou por causa das suas funções” para além de ter “ainda direito às ajudas de custo fixadas para os membros do Governo, abonadas pelo dia ou dias seguidos de presença em reunião do Conselho e mais 2”. Por outro lado, “a função de membro do Conselho de Estado é compatível com o exercício de qualquer outra atividade, pública ou privada”.


Confrontado com esta situação, o Tribunal Constitucional entendeu, e não poderia deixar de o fazer, que a legislação nacional determina que “todos os membros de órgãos constitucionais são considerados titulares de cargos políticos”. Sendo o Conselho de Estado um órgão constitucional, de acordo com a lei António Damásio está, portanto, obrigado a entregar a tal Declaração.

A legislação em causa tem em vista a transparência no exercício de cargos políticos e assim prevenir a corrupção. Temos de convir que, no caso concreto do Conselho de Estado, esta normativa pode ser considerada como perfeitamente desajustada, mas é a que existe na realidade. Neste caso, impede o Presidente da República de ser aconselhado por uma personalidade de ímpar qualidade.

Lá de onde observará o que se passa em Portugal neste ano de 2024, Franz Kafka deve dizer para si mesmo que a imaginação que o levou a escrever a sua obra mais famosa é ultrapassada pela nossa realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Fevereiro de 2024 

Imagens retiradas da internet

 

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