terça-feira, 19 de março de 2024

O Inverno do nosso descontentamento

 


Foi um Inverno atípico este, passado todo ele em campanha eleitoral. E, se é um facto que as eleições são a festa da Democracia, sendo os resultados eleitorais a afirmação da vontade popular, o que se passa nas campanhas é muitas vezes desolador, quando não deprimente. E a duração de uma campanha desde inícios de Novembro até aos meados de Março é, definitivamente, algo que não deverá voltar a repetir-se, O Presidente Marcelo lá apontou as suas razões para passarmos um Inverno mergulhados em campanha, mas que foi demais, penso que estaremos todos de acordo.

E o que começou mal, mal acabou. As razões que levaram à demissão do Primeiro-Ministro e à posterior dissolução da Assembleia da República são conhecidas e não orgulham ninguém. Um Primeiro-Ministro demitir-se por estar a ser investigado pela Justiça, mal ou bem ainda está para se saber, e no dia seguinte saber-se que o seu chefe de gabinete tinha mais de 70.000 euros escondidos no Palacete de S. Bento é algo a lamentar, em absoluto. Que o Presidente da República, no uso das suas competências constitucionais, não aceite outro governo saído de uma maioria absoluta parlamentar existente é algo que merecia outra justificação que não a de o primeiro-ministro ter sido escolhido directamente pelo povo, que não o foi.

E as eleições tiveram um resultado que, se havia quem o previsse, na realidade surpreendeu pela nova composição da Assembleia da República. Quem ganhou? As Direitas. A AD do PSD e do CDS, a Iniciativa Liberal e o Chega somaram 3.232.119 votos.

Quem perdeu? As Esquerdas. O PS, o BE, a CDU e o Livre somaram 2.436.413 votos. O PS perdeu 486 mil votos, o BE ganhou mais 33 mil, a CDU perdeu 34 mil e o Livre obteve mais 130 mil votos.

Deixo de fora o PAN e o ADN, mas cujos resultados em nada alteram a correlação de forças. Do ponto de vista político, a surpresa maior veio da descida da abstenção: mais de 770 mil cidadãos decidiram ir votar para além dos que foram às urnas em 2022. Salta à vista a proximidade com o aumento de votação do Chega: mais 723.mil votos do que há dois anos no que parece pacífico considerar-se como sendo uma manifestação de protesto, algo em si negativo, mas com grande significado político. Os partidos do centro político fariam bem em analisar internamente o que fizeram ou o que não fizeram para gerar tal descontentamento entre os eleitores que os leva a votar em tal partido! Já a AD (ou os partidos que a compõem) ainda assim recolheu mais 312 mil votos. A queda do PS foi absolutamente brutal, atendendo à maioria absoluta obtida há apenas dois anos. Claro que enquanto escrevo esta crónica não se conhecem ainda os resultados dos votos vindos do estrangeiro, mas sente-se que não alterarão muito a situação, já que se trata de apenas quatro mandatos. É indiscutível que nestas eleições não se verificou apenas a ida óbvia às urnas de centenas de abstencionistas para lavrarem o seu desagrado para com os partidos sistema, mas também uma rejeição clara da governação socialista dos últimos dois anos. E nem vale a pena recordar aqui o que foi essa governação, olhando para trás até parece que a maioria absoluta trouxe consigo um cansaço extremo da governação incapaz de avançar com reformas. Para além do PRR e da preocupação com o défice e a dívida pública, curiosamente desde sempre bandeiras da direita, a sensação era de que não havia mais nada a tratar pelo Governo, ficando tudo o resto para trás.


Como é usual, a Esquerda mais radical parece querer esquecer a sua real valia eleitoral e já manifestou vontade de se unir ao PS contra a AD, no caso de esta formar Governo como parece que vai suceder. Do lado da AD, mantém-se o “não é não” que significa que o PSD e o CDS, formando Governo, não integrarão o Chega, nem com ele farão acordo parlamentar. Assiste-se, assim, a uma situação de grande complexidade política que exigirá no novo Governo, de uma fragilidade política evidente, uma grande capacidade negocial, principalmente no que respeita aos Orçamentos, a começar já com o de 2025.

Foi realmente um Inverno do descontentamento. Mas há uma verdade inelutável. Aos rigores e dificuldades do Inverno segue-se sempre a vida trazida pela Primavera. Haja esperança.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Março de 2024

Imagens retiradas da internet

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