segunda-feira, 22 de abril de 2024

COM A VERDADE ME ENGANAS


A “verdade” é algo que, nos tempos que correm, anda muito arredado do nosso espaço público. Todos sabem ao que me refiro e penso nem ser necessário grandes explicações. Desde os processos judiciais em que uma investigação deita uma maioria absoluta e um governo para o lixo para depois vir um tribunal superior afirmar que não há qualquer suspeita de crime até uma verdade sobre descidas importantes de impostos não passar de uma simples árvore escondida dentro de uma floresta, vemos de tudo.

Ao longo da História a “verdade” tem sido objecto das maiores entorses, mas nada se compara ao que se passa na actualidade em que domina a chamada pós-modernidade. Nos tempos de Aristóteles, a coisa era muito simples e quase evidente, quando dizia que “verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser, não é”. Isto é, havia uma correlação imediata entre o que se percepcionava e a realidade que nos é exterior, de forma objectiva. A realidade não dependia na forma como se olhava para ela, não dependia das nossas crenças religiosas, políticas ou mesmo da nossa consciência. A realidade era o que era e só nos restava aceitar tal facto, ponto final. O realismo imperava e era a chave para compreender a “verdade” de todas as coisas. Era fácil vivermos em comunidade porque a percepção da realidade era comum a grande parte de nós e não valia a pena discutir muitas das coisas e situações que nos rodeavam.

Contudo, a certa altura, os homens começaram a verificar que nem todos percebemos a realidade da mesma maneira, pelo menos no que se refere não propriamente à matéria que respeita às ciências exactas, mas a tudo o resto que tem a ver com a acção humana. Daí até se achar que nada existe na realidade e que tudo depende da nossa percepção, foi um passo. Passo que, em termos filosóficos, foi dado em finais do séc. XIX por Nietzsche para quem a nossa percepção do que nos rodeia seria apenas fruto dos estímulos que recebemos. O “realismo” tinha dado lugar ao “perspectivismo”. Não demorou muito até surgirem as teorias políticas extremistas em que a perspectiva dos respectivos líderes se sobrepunha à realidade, já que esta pura e simplesmente não existia. Desta visão se apoderaram fascismos, nazismos e comunismos que pretendiam construir uma realidade paralela de acordo com as “percepções” dos respectivos líderes. Em consequência das tentativas de levar à prática aquelas teorias filosóficas, quem sofreu as maiores agruras foi a própria Humanidade com centenas de milhões de mortos, sofrimentos e perseguições indizíveis ainda hoje difíceis de compreender.


A partir daí, a distanciação relativamente à realidade só podia piorar. Assistimos hoje a uma absoluta negação da “Verdade” que se torna culpada de restringir a nossa própria liberdade. O individualismo absoluto campeia e todos passámos a ser detentores da nossa própria verdade, nem que isso vá contra as próprias leis da natureza. A ciência é negada todos os dias e a sua defesa como sendo a realidade é tida como uma atitude desrespeitosa contra a liberdade de quem diz o contrário. As redes sociais dão uma impressão ilusória de liberdade por anularem a mediação, mas por isso mesmo servem muitas vezes de veículo de mentira e de manipulação.

Claro que o individualismo absoluto que rejeita verdade comuns, ainda que absolutamente provadas pela ciência, abre o caminho aos maiores disparates e perigos sociais, constituindo um campo aberto aos extremismos que, como há cem anos, poderão destruir a Liberdade. Cabe-nos tentar perceber o que se passa e não permitirmos, cada um de nós, que em nome de supostas construções humanas se destrua a Humanidade.

E cabe-nos ainda ser exigentes com os nossos responsáveis políticos, sejam eles de que partido forem não aceitando mentiras nem distorções da realidade. Perante o que se tem visto, ouvido e lido, muito mais do que falar sobre corrupção é sobre reforma da Justiça que os partidos principais deviam falar verdade entre eles e com o Povo. Para que inocentes não penem anos a fio à espera de justiça e criminosos não andem anos a fio a atrasar processos até se livrarem por prescrições.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Abril de 2024

Imagens retiradas da internet

 

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