segunda-feira, 29 de abril de 2024

HAVIA UM PAÍS

 


Havia um país que nunca tinha conhecido verdadeiramente a Liberdade que acompanha um regime verdadeiramente democrático. Há quase cinco décadas que vivia num regime ditatorial saído de um golpe de estado militar que rapidamente havia devorado os militares que a tinham feito. Em vez de partidos havia um movimento afecto ao regime, do qual saiam deputados, governadores civis, presidentes da câmara e de freguesia. Havia uma assembleia, mas a escolha de deputados do tal partido único era feita em arremedo de eleições. O próprio presidente da República tinha passado a ser escolhido no interior do regime, depois de uma eleição em que um candidato oposicionista quase era eleito, para poucos anos depois ser assassinado. Quem praticou esse crime foi a polícia política que protegia o regime apoiada em legislação específica, quando não mesmo frequentemente fora dela. Muita gente era presa por essa polícia que praticava também tortura e muitas vezes mantinha pessoas presas mesmo sem decisão judicial ou até depois dela, por simples decisão policial. Esse país estava em guerra em territórios que sobravam de um antigo império colonial que queriam ser independentes, mesmo quando todos os países europeus já tinham procedido à descolonização dos seus territórios ultramarinos. Os soldados mortos ou estropiados contavam-se por milhares, espalhando-se ainda uma autêntica pandemia escondida: a do transtorno pós-traumático dos soldados regressados da guerra. Nesse país não havia liberdade de imprensa e os jornais eram sujeitos a uma censura prévia. Havia muitos livros proibidos pelos mais diversos motivos e mesmo a leitura de livros comprados nas livrarias era, por vezes, objeto de acção repressiva por decisão pessoal de polícias invadindo a vida particular das pessoas. Sob a capa de uma intenção de protecção da família, às mulheres desse país eram negados os mais elementares direitos, desde proibição de algumas profissões, à negação do divórcio ou até de saída ao estrangeiro sem autorização do marido. Claro que não podiam votar e o flagelo do aborto era praticado às escondidas sem cuidados médicos com possibilidade de ir parar à cadeia.

Antes, tinha havido uma República breve de pouco mais de quinze anos que não deixara muitas saudades, antes um país dividido mergulhado em confusão e violência que nunca conseguiu instaurar uma verdadeira democracia. Nos cem anos anteriores esse país foi invadido por exércitos estrangeiros que destruíram grande parte do território, quer nas cidades quer no mundo rural, tendo as elites fugido e abandonado os povos à sua sorte. Após o que se lhe seguiram anos sucessivos de pilhagens, revoluções e mesmo guerras civis. Todo um século de desgraças em que o país regrediu imenso face aos seus congéneres europeus em todos os aspectos.

Mas antes disso, esse país havia ainda vivido 285 anos, praticamente três séculos, sob o terror permanente de uma Inquisição que fiscalizava a vida de toda a gente de uma forma absoluta, sem que houvesse hipótese de defesa depois de se ser acusado.


É impossível que estes séculos de submissão e mesmo humilhação colectiva, não tenham tido consequências no sentimento profundo das populações desse país. Assim se compreende melhor que, num momento em que de repente a Liberdade aparece como uma verdade possível para toda a gente, tenha surgido uma sensação generalizada de alívio e de genuína satisfação que surpreendeu tudo e todos pela sua intensidade. E é impressionante e mesmo comovente que, apesar de todo o passado dos últimos trezentos e tal anos, os últimos cinquenta sejam de vida em democracia e Liberdade. Da primeira vez que o pôde fazer o Povo desse país agarrou a oportunidade com as duas mãos e, com inteligência e maturidade, nas urnas de voto que é a sua arma verdadeira, sucessivamente defendeu o seu futuro em Liberdade. Claro que nesse país com mais de oitocentos anos há muito por fazer e para melhorar, mas que que o possa fazer em democracia e Liberdade é algo que se deve saudar, acarinhar e, sobretudo, defender.

Portugal é esse país. Ao povo português, a que pertenço, obrigado por tudo.

Publicado originalmente em 29 Abril 2024

Imagens retiradas da internet

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