segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Boas-vindas ao Outono


 Já são setenta chegadas do Outono as vividas até agora. Curiosamente, é raro encontrar alguém que partilhe comigo o sentimento de satisfação que esta época me transmite. E, com o avançar da idade, esse sentimento é cada vez mais nítido, muito por significar o fim do Verão que sinto mais agressivo.

O Outono chegou ontem, de novo. De facto, no nosso hemisfério o Sol no seu movimento aparente anual ao longo da Eclíptica passou para o Sul do Equador Celeste no que chamamos o equinócio do Outono. É um dos dois momentos ao longo do ano em que a duração do dia é igual à da noite, sabendo-se que em 21 de Junho do próximo ano acontecerá o outro equinócio, nesse caso o da Primavera cuja importância astronómica é tão grande que tem o nome próprio de Ponto Vernal. Curiosamente, a Natureza encarrega-se de trocar as voltas aos adivinhos e outros charlatães que pretendem prever o futuro através das posições dos astros, não sabendo que a precessão dos equinócios ao longo do Equador Celeste coloca os astros onde eles não supõem.

E porque gosto do Outono? Porque a Natureza entra numa época de serenidade e de calma, não apenas pela temperatura mais amena, parecendo que tudo está pacificado. As árvores e muitas outras plantas como as videiras adoptam um colorido diferente, amarelo e avermelhado, antes de descansarem completamente para suportar os rigores do Inverno que aparecerá mais tarde. A festa anual das vindimas acontece agora, quando as uvas acabaram de absorver os calores estivais e estão prontas para se transformar nos vinhos que apreciamos desde tempos imemoriais. Na realidade, acredito que não estarei muito sozinho neste apreciar do Outono, pelo menos em alguns dos seus aspectos.

Nas suas Quatro Estações, que tanto detestei em tempos, para depois apreciar sobremaneira depois de as ouvir no violino de Nigel Kennedy que mas deu a melhor compreender, Vivaldi dedica ao Outono um trecho de suave beleza e encantamento. Bem diferentemente dos dedicados às outras estações que, claro, também têm a sua beleza própria, mas diversa, tal como as que a Natureza nos oferece.

Socialmente, estes dias têm um significado profundo. É o tempo do regresso ao trabalho em força, depois do merecido descanso anual. As cidades são-devolvidas aos seus habitantes e retomam o seu ritmo normal com a saída das multidões de turistas que actualmente as ocupam durante o Verão. E, fundamentalmente, os jovens regressam às escolas sendo um encanto ver como as crianças pequenas enchem o ar de gritos e risadas no seu reencontro com os colegas.

Muitos poetas se sensibilizam com o Outono, não resistindo a citar aquele que tanto nos diz a nós, conimbricenses, que não esquecemos a sua figura austera. Falo de Miguel Torga que em 1966 cantava no seu Diário X:

Tarde pintada

Por não sei que pintor.

Nunca vi tanta cor

Tão colorida!

Se é de morte ou de vida

Não é comigo!

Eu, simplesmente, digo

Que há fantasia

Neste dia,

Que o mundo me parece

Vestido por ciganas adivinhas,

E que gosto de o ver, e me apetece

Ter folhas como as vinhas.

 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Setembro de 2024 

Imagem criada no chatgtp

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

PATRIMÓNIO ESCONDIDO: Paço de Tentúgal

 


Em Tentúgal, quando circulamos na estrada para a Figueira da Foz, se virarmos à esquerda nos semáforos podemos ver, por trás das edificações existentes, um conjunto arquitectónico evidentemente antigo em acentuado estado de degradação. Trata-se do Paço do Infante Dom Pedro, também conhecido por Quinta do Paço ou Paço dos Duques do Cadaval.

Para conhecer algo sobre este conjunto arquitectónico socorro-me das informações do Sistema de Informação para o Património Arquitetónico da Direcção Geral do Património Cultural. Ficamos assim a saber que a informação mais antiga sobre este Paço é de Outubro de 1413 quando o Rei D. João I doou ao Infante Dom Pedro, ainda muito jovem, o lugar, paços e reguengo de Tentúgal. Dois anos depois, no regresso da tomada de Ceuta, Dom Pedro é nomeado Duque de Coimbra e, em 1417, o Duque de Coimbra mandou construir a capela de S. Miguel no seu Paço.

Dom Pedro de Avis e Lencastre foi Regente da Coroa de Portugal durante a infância de D. Afonso V, Duque de Coimbra, Senhor de Montemor e de Buarcos, de Aveiro, Ílhavo, bem como Senhor de Tentúgal, de Mira, de Penela, Lousã e outras terras da Beira Litoral. Haveria de ser vítima de cilada por parte de D. Afonso V e de D. Afonso 1º Duque de Bragança seu meio-irmão, sendo cobardemente assassinado em Alfarrobeira em 20 de Maio de 1449.

É quase impossível não cair na tentação de ligar o actual destino do Paço ao do seu mais antigo proprietário já que a memória do Infante dom Pedro, o Príncipe das Sete Partidas, parece ter sofrido alguma maldição destinada a apagar o seu nome e o seu relevante papel na História do Portugal do início do sec. XV. Ao destruir a memória de Dom Pedro nunca um cronista oficial terá sido tão eficiente na limpeza de um nome grande como Gomes Eanes de Zurara que bem mereceria ser considerado o grande percursor das “fake news” do nosso tempo.


Em 1476 o Paço de Tentúgal seria objecto de uma troca entre o príncipe D. João, futuro Rei Dom João II o Príncipe Perfeito neto do Duque Dom Pedro, e D. Álvaro de Portugal, pai do 1º Conde de Tentúgal, D. Rodrigo de Melo. Assim terminava a ligação do Paço de Tentúgal com o antigo Regente do Reino. Em 1648 o Conde de Tentúgal D. Nuno Álvares Pereira de Melo, é nomeado 1º Duque de Cadaval, título concedido por D. João IV aí se iniciando a ligação do Paço à Casa de Cadaval, entrando em ruínas pouco depois por falta de utilização. Em 1834 o Paço foi incendiado pelos liberais dado que o então 6º Duque do Cadaval pertencia à facção absolutista. Continuando na posse da Casa de Cadaval, sofreu profundas alterações durante o sec. XIX e foi utilizado ainda durante boa parte do sec. XX, após o que entrou em estado de acentuada degradação, até hoje. Por volta do fim do sec. XX o Paço que inclui as edificações e terrenos com mais de 120 mil metros quadrados foi vendido a uma sociedade imobiliária, tendo desde então sido objecto de várias transacções.

Felizmente, devido à atenção e cuidado do CEMAR dirigido por Alfredo Pinheiro Marques o Paço foi declarado Monumento de Interesse Público por Portaria publicada no Diário da República em Junho de 2013.


Uma breve visita permitiu verificar que as edificações abrangem o palácio propriamente dito constituído por vários corpos, com aberturas de janelas ogivais e três grandes chaminés. A capela mandada construir pelo Duque Dom Pedro nunca foi reconstruída, resistindo as paredes de grande altura e o pórtico ogival. O celeiro para o milho construído há mais de 500 anos impressiona pelas suas dimensões, mas também pelas características da construção, havendo notícia de que o telhado ruiu já durante o sec. XX. Tem oitenta metros de comprimento, sendo constituído por três naves à maneira de uma grande igreja, com colunas lindíssimas ainda hoje erectas.

Todo o conjunto é impressionante, incluindo eira e os acessos ao longo dos terrenos, com uma vista extraordinária sobre os terrenos do Baixo Mondego. As edificações terão ainda elementos significativos das construções originais, pelo que a classificação como monumento de interesse público é de capital importância para uma futura e desejável recuperação e capacidade de utilização que lhes dê nova vida. Em suma, se o leitor ainda não conhece, desafio-o a passar por lá e aperceber-se de um património escondido e quase desconhecido que só posso classificar como fabuloso, aqui lhe deixando uma fotografia que tirei à distância.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  16 de Setembro 2024

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Síndrome de Estocolmo na Alemanha?


 No fim da II Guerra Mundial a Conferência de Potsdam dividiu a Alemanha em quatro zonas de ocupação controladas pelos países vencedores: Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética. Essa divisão foi alterada em 1949 quando as três zonas dos países ocidentais se uniram para formar a República Federal da Alemanha (RFA). Já a zona de ocupação soviética passou a ser a República Democrática Alemã (RDA). Enquanto a RFA integrou por completo, isto é, dos pontos de vista económico, social e político o mundo liberal ocidental, a RDA tornou-se o epítome do modelo comunista. As populações da RFA foram sujeitas a uma desnazificação profunda visando um futuro completamente democrático para os alemães. Já na RDA vigorou um sistema policial férreo com uma das polícias políticas mais eficazes e aterrorizantes que se conhecem, a STASI; diz-se mesmo que metade da população vigiava e denunciava regularmente a outra metade. Esta divisão vigorou até 1990 quando se verificou a reunificação alemã após a queda do Muro de Berlim em 1989 e subsequente implosão do império soviético. A população da RDA viveu naquele regime durante 44 anos que se seguiram aos 22 anos de regime nazi com Hitler no poder, incluindo os anos da II Grande Guerra.

Verifica-se hoje que a reunificação alemã consistiu fundamentalmente numa chuva de dinheiro sobre a zona da antiga RDA que conseguiu recuperar fisicamente o território que o regime comunista tinha degradado com as suas políticas económicas desastrosas, incluindo dos pontos de vista habitacional e ambiental. Mas é evidente que algo ficou por fazer: a recuperação social da população abrangida que ainda hoje se sente inferiorizada face à sua congénere da antiga RFA.

Mas outro aspecto social mais profundo parece hoje ressaltar depois de tantos anos de repressão violenta e confinamento político. Como se sabe, as vítimas de sequestro desenvolvem, por vezes, sentimentos positivos de compreensão ou mesmo de empatia e cumplicidade em relação aos seus raptores. É a chamada Síndrome de Estocolmo. Serviria uma situação deste tipo para explicar em boa parte o que se está a passar com as eleições regionais alemãs nos estados que integravam a antiga RDA em que, pela primeira vez na Alemanha desde o fim da II Guerra Mundial, se verificou a vitória de um partido declaradamente de extrema-direita, com liderança mesmo fascista. Na Turíngia a AFD (Alternativa para a Alemanha) venceu as eleições estaduais com 32,8% dos votos, tendo ficado em segundo lugar, atrás da CDU, na Saxónia com 30,6%. Nestas eleições foram chamados a votar cinco milhões de alemães pelo que não são uns resultados a desprezar, longe disso. Acresce que já no próximo dia 22 haverá eleições semelhantes no estado de Brandenburgo, com as sondagens a colocar a AFD à frente num estado governado há 11 anos por um líder do SPD que, a perder, colocará o governo federal de Olaf Scholz em apuros. O líder da AFD na Turíngia é Björn Höcke que já foi condenado por usar slogans nazis e defende que a Alemanha devia deixar de pedir desculpa pelos crimes do nazismo.

Há na AFD quem defenda a realização de um referendo sobre a saída da Alemanha da União Europeia, o que poderá fazer se chegar ao poder. Como se percebe, isso ditaria o fim da União Europeia, o que deixaria alguém muito satisfeito. Falo de Putin e dos países que com ele defendem uma nova ordem internacional que constituiria um retrocesso civilizacional evidente com o abandono de todas as regras de convivência que têm sido arduamente conquistadas desde o fim da II Guerra Mundial. Sabe-se que, entre os quadros da AFD, se incluem antigos membros da STASI, o que vem mais uma vez provar nos extremos políticos as proximidades sobre desejo de exercício de poder absoluto são muito mais fortes do que as diferenças ideológicas.


Nada do que acontece num determinado momento é independente do passado, antes sendo resultado de movimentos sociais muitas vezes imperceptíveis à maioria. No fim da II Guerra Mundial o Gen. Dwight D. Eisenhower, Comandante Chefe das Forças Armadas Aliadas, chamou todos os jornalistas para fotografar e filmar no sítio os horrores dos campos de concentração nazis, argumentando que o fazia para criar testemunhos porque sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém viria a negar tudo o que ali se tinha passado. Tal como obrigou os alemães moradores da zona a verem com os seus próprios olhos as barbaridades que o seu país tinha cometido.

Nós, europeus do início desde sec. XXI, temos de ter consciência do que nos trouxe até aqui, do valor da paz e dos desenvolvimentos civilizacionais de que temos beneficiado. E evitar que extremistas ponham tudo isso em causa, a bem dos nossos filhos e dos nossos netos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Setembro de 2024

Imagens recolhidas na internet

LIBERDADE DE INFORMAÇÃO

 


A simples passagem do tempo leva que cada vez vão sendo menos os portugueses que sabem, por experiência vivida, o que significam a falta de liberdade de expressão e de informação. A ditadura já lá vai há cinquenta anos e a Constituição da República Portuguesa garante essas liberdades nos seus artigos 37º e 38º.

Quando os regimes ditatoriais duram muito tempo, os cidadãos acabam frequentemente por interiorizar as limitações à sua liberdade, parecendo até que a actividade dos censores já não é necessária. Olhando para trás isso parece evidente, quer em ditaduras de direita como era o nosso caso, quer nas de esquerda como acontecia nos países da Europa de Leste, de que a RDA e a Roménia serão exemplos claros. Claro que, ao abrir-se uma janela, a liberdade entra por ali dentro e os cidadãos, ao respirar ar limpo, rapidamente se habituam à nova situação e quase esquecem a anterior, como se fosse apenas um sonho mau. Nada que impeça alguns de tentarem de novo “proteger” o povo de “más influências. Relembro que em 1975 quando os portugueses ainda estavam a aprender a viver em liberdade, um membro de um governo provisório tentou abafar a liberdade de informação. Era Comandante da Marinha e sujeitou-se a um artigo demolidor de Artur Portela Filho com o título “À abordagem” tendo metido a viola no saco, nunca mais se tendo ouvido falar de tal coisa.

É por isso que se estranha e dificilmente se admite que, precisamente nos 50 anos do 25 de Abril, tenha sido possível assistir à recente intervenção da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social) emitindo uma deliberação contra o jornalista da RTP José Rodrigues dos Santos a propósito da sua entrevista à cabeça de lista do PS nas recentes eleições para o Parlamento Europeu. Em primeiro lugar, mal se percebe que, em plena Democracia estabilizada, exista uma tal instituição que, lembra-se, é uma herança da tenebrosa governação de José Sócrates, também no que respeita ao condicionamento político da comunicação social. Em segundo lugar, todos nós estamos habituados a assistir a entrevistas nas televisões mais variadas de países democráticos em que os entrevistados têm de se defender a sério de perguntas difíceis. Parece que em Portugal se continua com a mentalidade do “respeitinho” pelo poder. Isto não tem nada a ver com qual a personalidade em causa, muito menos qual o partido a que pertence. E ver uma entidade como a ERC emitir uma deliberação condenatória de um jornalista para a seguir se ver obrigada a alterá-la porque colocou na boca do jornalista palavras que ele não disse só pode ser vexatório para quem tem nas suas atribuições “assegurar o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no espaço mediático, zelar pela independência dos meios de comunicação social perante o poder político e económico, e garantir a diversidade de opiniões”.

Uma democracia adulta não precisa de uma entidade como a ERC para defender liberdade de opinião e independência dos meios de comunicação social. Até porque a nomeação dos seus membros é política por depender dos partidos na AR e do Governo. Para tudo isso existem os tribunais e os diversos crimes que podem estar em causa estão todos contemplados na Lei. Quando as pessoas se acham vítimas de insulto ou de injúria têm perfeita liberdade para corrigir a situação junto da Justiça.

Assiste-se com frequência, parece mesmo ser uma regra, defender automaticamente os políticos do partido da sua preferência e denegrir todos os outros. Trata-se de uma armadilha que, mais tarde ou mais cedo, se volta contra quem assim procede. Acima de tudo, devemos ter consciência de que as garantias constitucionais e o seu exercício cívico estão acima das querelas partidárias, devendo-se ter sempre respeito pela liberdade de informação, condição essencial para a existência de Democracia. E não esqueçamos que acusar os transmissores das más notícias pelos seus próprios desaires é algo que já desde os tempos dos romanos se sabe dar mau resultado.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Setembro 2024

Imagem recolhida na internet