segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Síndrome de Estocolmo na Alemanha?


 No fim da II Guerra Mundial a Conferência de Potsdam dividiu a Alemanha em quatro zonas de ocupação controladas pelos países vencedores: Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética. Essa divisão foi alterada em 1949 quando as três zonas dos países ocidentais se uniram para formar a República Federal da Alemanha (RFA). Já a zona de ocupação soviética passou a ser a República Democrática Alemã (RDA). Enquanto a RFA integrou por completo, isto é, dos pontos de vista económico, social e político o mundo liberal ocidental, a RDA tornou-se o epítome do modelo comunista. As populações da RFA foram sujeitas a uma desnazificação profunda visando um futuro completamente democrático para os alemães. Já na RDA vigorou um sistema policial férreo com uma das polícias políticas mais eficazes e aterrorizantes que se conhecem, a STASI; diz-se mesmo que metade da população vigiava e denunciava regularmente a outra metade. Esta divisão vigorou até 1990 quando se verificou a reunificação alemã após a queda do Muro de Berlim em 1989 e subsequente implosão do império soviético. A população da RDA viveu naquele regime durante 44 anos que se seguiram aos 22 anos de regime nazi com Hitler no poder, incluindo os anos da II Grande Guerra.

Verifica-se hoje que a reunificação alemã consistiu fundamentalmente numa chuva de dinheiro sobre a zona da antiga RDA que conseguiu recuperar fisicamente o território que o regime comunista tinha degradado com as suas políticas económicas desastrosas, incluindo dos pontos de vista habitacional e ambiental. Mas é evidente que algo ficou por fazer: a recuperação social da população abrangida que ainda hoje se sente inferiorizada face à sua congénere da antiga RFA.

Mas outro aspecto social mais profundo parece hoje ressaltar depois de tantos anos de repressão violenta e confinamento político. Como se sabe, as vítimas de sequestro desenvolvem, por vezes, sentimentos positivos de compreensão ou mesmo de empatia e cumplicidade em relação aos seus raptores. É a chamada Síndrome de Estocolmo. Serviria uma situação deste tipo para explicar em boa parte o que se está a passar com as eleições regionais alemãs nos estados que integravam a antiga RDA em que, pela primeira vez na Alemanha desde o fim da II Guerra Mundial, se verificou a vitória de um partido declaradamente de extrema-direita, com liderança mesmo fascista. Na Turíngia a AFD (Alternativa para a Alemanha) venceu as eleições estaduais com 32,8% dos votos, tendo ficado em segundo lugar, atrás da CDU, na Saxónia com 30,6%. Nestas eleições foram chamados a votar cinco milhões de alemães pelo que não são uns resultados a desprezar, longe disso. Acresce que já no próximo dia 22 haverá eleições semelhantes no estado de Brandenburgo, com as sondagens a colocar a AFD à frente num estado governado há 11 anos por um líder do SPD que, a perder, colocará o governo federal de Olaf Scholz em apuros. O líder da AFD na Turíngia é Björn Höcke que já foi condenado por usar slogans nazis e defende que a Alemanha devia deixar de pedir desculpa pelos crimes do nazismo.

Há na AFD quem defenda a realização de um referendo sobre a saída da Alemanha da União Europeia, o que poderá fazer se chegar ao poder. Como se percebe, isso ditaria o fim da União Europeia, o que deixaria alguém muito satisfeito. Falo de Putin e dos países que com ele defendem uma nova ordem internacional que constituiria um retrocesso civilizacional evidente com o abandono de todas as regras de convivência que têm sido arduamente conquistadas desde o fim da II Guerra Mundial. Sabe-se que, entre os quadros da AFD, se incluem antigos membros da STASI, o que vem mais uma vez provar nos extremos políticos as proximidades sobre desejo de exercício de poder absoluto são muito mais fortes do que as diferenças ideológicas.


Nada do que acontece num determinado momento é independente do passado, antes sendo resultado de movimentos sociais muitas vezes imperceptíveis à maioria. No fim da II Guerra Mundial o Gen. Dwight D. Eisenhower, Comandante Chefe das Forças Armadas Aliadas, chamou todos os jornalistas para fotografar e filmar no sítio os horrores dos campos de concentração nazis, argumentando que o fazia para criar testemunhos porque sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém viria a negar tudo o que ali se tinha passado. Tal como obrigou os alemães moradores da zona a verem com os seus próprios olhos as barbaridades que o seu país tinha cometido.

Nós, europeus do início desde sec. XXI, temos de ter consciência do que nos trouxe até aqui, do valor da paz e dos desenvolvimentos civilizacionais de que temos beneficiado. E evitar que extremistas ponham tudo isso em causa, a bem dos nossos filhos e dos nossos netos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Setembro de 2024

Imagens recolhidas na internet

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