segunda-feira, 14 de abril de 2025

UM PESSEGUEIRO

 

Ouve-se muitas vezes dizer que uma vida só fica completa quando se planta uma árvore, se tem um filho e se escreve um livro. No que me diz respeito, tenho filhos e os netos mais lindos do mundo, claro, tal como estão escritas milhares de páginas para vários livros, falta juntar algumas colocar-lhes uma capa e tratar da publicação.

Mas, curiosamente, a parte que respeita à árvore, embora possa parecer a menos pessoal para a maior parte de nós, é a que faz parte da minha vida há mais tempo, bem mais de sessenta anos. Claro que ao longo da vida tive oportunidade de plantar algumas centenas de árvores, mas há aquela, a especial, que tem um lugar especial na memória dos afectos. Trata-se de um pessegueiro que teve a sua vida e já não existe.

Certamente não por acaso, o pêssego é a fruta de que mais gosto, de longe. Através da internet aprendemos que a designação científica de “Prunus persica” remete para a proximidade com a ameixa, mas o nome pêssego virá do latim “persicum”, designação que os antigos romanos lhe davam, por ser muito cultivada na Pérsia. A árvore pode viver até aos trinta anos, com uma vida produtiva de menos de vinte anos.

Nas traseiras da casa em que nasci e onde vivi os primeiros anos havia uma quintarola que permitia um contacto directo e diário com a natureza. Não espanta que a curiosidade infantil levasse a um gosto por ver crescer plantas. Foi assim que, cerca dos 5/6 anos de idade coloquei um caroço de pêssego num vaso e tratei dele até uma pequena planta começar a brotar da terra e crescer bem direita. Isto na Primavera e início do Verão, que os pessegueiros gostam de calor. Mas chegou a altura das férias na Figueira da Foz e a preocupação de deixar a pequena planta sem a regar nessas semanas. A solução foi colocar o vaso debaixo do beiral da casa, na esperança de que alguma chuva de Verão não deixasse morrer de sede a pequena planta. No regresso da praia a primeira coisa a fazer foi correr a verificar se a planta tinha resistido aos calores do Verão. E lá estava o pequeno projecto de árvore, bem direito com mais uns centímetros de altura. Claro que, mais tarde, o pequeno pessegueiro foi transplantado do vaso para a terra e continuou a crescer, agora sem precisar já dos meus cuidados. Tendo, poucos anos depois, acompanhado a família para viver noutra terra, estive anos sem ver a árvore que tinha plantado sozinho. Já adulto, lembrei-me daquela árvore que a memória, sabe-se lá porquê trouxe à consciência e resolvi passar por lá a verificar se ainda lá existiria. E, sim, lá estava o meu pessegueiro, já não direito e forte como anos antes, mas torto e algo encarquilhado. Durante alguns anos passei por lá ainda algumas vezes apenas para ver se ainda existia até que deixou de estar: ou caíra ou alguém o teria cortado por ter secado, sendo já inútil.

Das três condições ou objectivos de vida, duas têm a ver com o futuro. Tomamos consciência clara disso quando surgem os filhos e temos a felicidade de os ver voar e viver as suas próprias vidas, mas essencialmente quando vêm os netos. Aí tomamos consciência de que são a verdadeira máquina do tempo que nos projectam para o futuro, mesmo depois de sermos. Tal como acontece com as palavras que escrevemos e os outros as leem porque impressas ou publicadas na internet: ficam para o futuro.

Já plantar uma árvore tem um significado completamente diferente. De alguma forma liga-nos à Natureza e a tudo o que existe e a que pertencemos, antes e independentemente de nós, isto é, a um passado que pré-existe. Pode parecer, a muitos, que uma ligação afectiva a uma árvore seja algo de estranho. Mas o “meu” pessegueiro prova o contrário. É um tomar consciência de que somos apenas um momento entre um passado e um futuro e que temos uma enorme responsabilidade: respeitar o passado de que vimos para que o futuro dos que para cá trazemos seja algo que valha também ser vivido.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 Abril 2025

terça-feira, 8 de abril de 2025

ÉTICA E POLÍTICA

 

Lembro-me bem da resposta de um ministro socialista do tempo de Mário Soares que, quando indagado sobre a ética de determinada atitude respondeu que “a ética é a lei da República”. Tratando-se de uma pessoa inteiramente proba fiquei na altura desagradavelmente impressionado, por parecer que esse ministro não reconhecia limitações à sua actividade, no caso política, para além do estabelecido no Código Penal.

É pacífico considerar que o comportamento humano deve ter princípios que o orientem. É precisamente ao estudo filosófico desses princípios que se refere a ética, procurando definições do que está certo ou é errado, bom ou mau. Diferentemente da moral que se refere às normas e valores aceites por determinada sociedade e que é influenciada por religião ou tradição, a ética é filosófica e pessoal.

A ética é estudada e tratada desde há muito tempo, sendo normalmente considerada a obra “Ética a Nicómaco” da autoria de Aristóteles, escrita no sec. IV AC, como a primeira que se refere ao assunto de uma forma sistemática.

O termo “ética” deve ser o mais utilizado na discussão política e na comunicação social em geral nos últimos meses, em Portugal. Numa crítica simplista, alguém me disse há poucos dias que juntar os termos ética e política na mesma frase só pode ser uma manifestação de mau-gosto. Claro que se referia à actividade política partidária com o único objectivo de ganhar o poder e de o manter, ainda que de forma democrática, não ao fim nobre último de tratar do bem comum que parece cada vez mais esquecido.

O comportamento notoriamente pouco ético do Primeiro-ministro no que se refere à sua empresa familiar tem constituído o principal ponto de discussão política nas últimas semanas e nesta pré-campanha para as eleições legislativas de 18 de Maio próximo. Na realidade aquela empresa revela muito do que se passa com a política em Portugal nos últimos anos em que a classe política de topo deixou de ser sinónimo de superioridade intelectual, moral e profissional para ser constituída por pessoas que tratam da sua vida à sombra das ligações políticas e influências inerentes. Algo transversal aos principais partidos, nem vale a pena exemplificar de tão óbvio que é. Não se trata aqui de actividades criminosas mas de vidas que, contudo, andam muitas vezes ali perto da fronteira da legalidade que, com alguma sorte, até correm menos mal e sem problemas com a Justiça.

Mas ver dirigentes políticos dos mais diversos quadrantes fazer política com ataques à ética, ou falta dela, de outros, não deixa de ser surpreendente, umas vezes, ou patético, noutras. Substituir as propostas políticas pela crítica da falta de ética de adversários pode dar muitas primeiras páginas de jornais e abertura de telejornais, mas é inconsequente do ponto de vista do interesse judicial e do julgamento eleitoral. Desde logo, porque a falta de ética não consta da lista do Código Penal, aliás se constasse, poucos responsáveis partidários concelhios e distritais estariam em liberdade, pelos procedimentos hoje aceites como normais para a conquista desses lugares. Depois, as acusações de falta de ética aos adversários políticos mostram muito da hipocrisia reinante, notoriamente quando vêm de áreas partidárias extremistas que de defesa da ética pouco ou nada têm: são apenas armas de arremesso político de momento. Curiosamente, os portugueses parecem pouco ligar a estas questões que nem se resolvem em Tribunal. Talvez porque sentem que, se há algo pouco empolgante, é ver alguém declarar que é mais ético que outrem.

Realmente o ambiente político não tem nada a ver com o que era há vinte ou trinta anos. Actualmente um político não pode ter a pretensão de achar que para além da lei não há outros valores a considerar. E muito menos dizê-lo publicamente. E, convenhamos, já não é mau que assim seja.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Abril de 2025