Ouve-se muitas vezes dizer que uma vida só fica completa quando se planta uma árvore, se tem um filho e se escreve um livro. No que me diz respeito, tenho filhos e os netos mais lindos do mundo, claro, tal como estão escritas milhares de páginas para vários livros, falta juntar algumas colocar-lhes uma capa e tratar da publicação.
Mas, curiosamente, a parte que respeita à árvore, embora possa parecer a menos pessoal para a maior parte de nós, é a que faz parte da minha vida há mais tempo, bem mais de sessenta anos. Claro que ao longo da vida tive oportunidade de plantar algumas centenas de árvores, mas há aquela, a especial, que tem um lugar especial na memória dos afectos. Trata-se de um pessegueiro que teve a sua vida e já não existe.
Certamente não por acaso, o pêssego é a fruta de que mais gosto, de longe. Através da internet aprendemos que a designação científica de “Prunus persica” remete para a proximidade com a ameixa, mas o nome pêssego virá do latim “persicum”, designação que os antigos romanos lhe davam, por ser muito cultivada na Pérsia. A árvore pode viver até aos trinta anos, com uma vida produtiva de menos de vinte anos.
Nas traseiras da casa em que nasci e onde vivi os primeiros anos havia uma quintarola que permitia um contacto directo e diário com a natureza. Não espanta que a curiosidade infantil levasse a um gosto por ver crescer plantas. Foi assim que, cerca dos 5/6 anos de idade coloquei um caroço de pêssego num vaso e tratei dele até uma pequena planta começar a brotar da terra e crescer bem direita. Isto na Primavera e início do Verão, que os pessegueiros gostam de calor. Mas chegou a altura das férias na Figueira da Foz e a preocupação de deixar a pequena planta sem a regar nessas semanas. A solução foi colocar o vaso debaixo do beiral da casa, na esperança de que alguma chuva de Verão não deixasse morrer de sede a pequena planta. No regresso da praia a primeira coisa a fazer foi correr a verificar se a planta tinha resistido aos calores do Verão. E lá estava o pequeno projecto de árvore, bem direito com mais uns centímetros de altura. Claro que, mais tarde, o pequeno pessegueiro foi transplantado do vaso para a terra e continuou a crescer, agora sem precisar já dos meus cuidados. Tendo, poucos anos depois, acompanhado a família para viver noutra terra, estive anos sem ver a árvore que tinha plantado sozinho. Já adulto, lembrei-me daquela árvore que a memória, sabe-se lá porquê trouxe à consciência e resolvi passar por lá a verificar se ainda lá existiria. E, sim, lá estava o meu pessegueiro, já não direito e forte como anos antes, mas torto e algo encarquilhado. Durante alguns anos passei por lá ainda algumas vezes apenas para ver se ainda existia até que deixou de estar: ou caíra ou alguém o teria cortado por ter secado, sendo já inútil.
Das três condições ou objectivos de vida, duas têm a ver com o futuro. Tomamos consciência clara disso quando surgem os filhos e temos a felicidade de os ver voar e viver as suas próprias vidas, mas essencialmente quando vêm os netos. Aí tomamos consciência de que são a verdadeira máquina do tempo que nos projectam para o futuro, mesmo depois de sermos. Tal como acontece com as palavras que escrevemos e os outros as leem porque impressas ou publicadas na internet: ficam para o futuro.
Já plantar uma árvore tem um significado completamente diferente. De alguma forma liga-nos à Natureza e a tudo o que existe e a que pertencemos, antes e independentemente de nós, isto é, a um passado que pré-existe. Pode parecer, a muitos, que uma ligação afectiva a uma árvore seja algo de estranho. Mas o “meu” pessegueiro prova o contrário. É um tomar consciência de que somos apenas um momento entre um passado e um futuro e que temos uma enorme responsabilidade: respeitar o passado de que vimos para que o futuro dos que para cá trazemos seja algo que valha também ser vivido.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 Abril 2025
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