terça-feira, 25 de novembro de 2025

NASCIDA EM ABRIL, SALVA EM NOVEMBRO

 

Para variar, começo esta crónica com uma pequena história. A criança tinha sido longamente desejada e acabou por nascer de um parto complicado, mas saudável e com notória vontade de viver. Os pais ficaram, como é normal, contentíssimos com a chegada do rebento e prepararam-se para lhe dar todas as condições para uma vida longa e feliz. Como todas as crianças, claro que sofreu de doenças e viveu situações de perigo que os pais, mesmo os mais vigilantes, não podem estar sempre presentes para garantir completamente a segurança. Quando já tinha uns cinco mesitos, sofreu de algumas dores, que os médicos classificaram como uma vulgar crise de crescimento, talvez sinal do aparecimento do primeiro dentito de leite. Aos onze meses atacou-a uma virose já séria não sendo ainda possível, na altura, saber se teria consequências de saúde mais graves. Mas o primeiro aniversário foi uma festa gigantesca com a participação, não só da família mais directa, mas também de imensos primos e mesmo de conhecidos e amigos que não quiseram deixar de participar activamente nas festividades. Sinal de que muita gente tinha vontade de vir a participar em mais aniversários daquela criança bonita e sempre bem-disposta em quem, já não apenas os pais, tanta gente depositava esperanças. Aos dezanove meses já a criança andava, embora ainda cambaleante, mas dando os seus primeiros passeios exploratórios do que a rodeava. Foi nessa altura que se deu um acontecimento que poderia ter mudado o futuro da criança de forma trágica. Com os pais ocupados a tratar de assunto decerto importante, a criança escapuliu-se para o jardim e afastou-se de segurança da casa. Uns vizinhos estavam a cortar uma árvore para se aquecerem com a lenha e, embora se tivessem apercebido da presença da criança, não se preocuparam e continuaram a sua actividade, considerando que o seu aquecimento era mais importante que uma criança. Quando a árvore se começou a inclinar para cima da criança, os pais aperceberam-se do que estava prestes a acontecer e correram aflitos, conseguindo pegar nela e salvá-la, embora eles próprios tivessem ficado feridos. Esse acontecimento que poderia ter feito com que a vida da criança tivesse ficado por ali ficou para sempre marcado na memória de todos.

Na verdade, a criança desta história chama-se Liberdade e nasceu a 25 de Abril de 1974. Não morreu a 25 de Novembro de 1975 porque foi salva pelos pais de morte certa, no último momento.

Cinquenta anos depois, quem quase matou a criança recusa-se a celebrar esse salvamento o que é perfeitamente compreensível, porque nunca assumiu as suas responsabilidades nesse acto. Discute-se se o salvamento da Liberdade da morte certa coloca em causa o seu nascimento: discussão mais tola deve ser difícil de inventar.

O que deve ser celebrado é a vida, em todos s seus momentos. E a vida saudável e permanente da Liberdade é algo a comemorar permanentemente mas, sobretudo, a proteger sempre. Com a consciência de que a democracia assegura a liberdade mesmo aos que dela se aproveitam para a tentar destruir, sendo mesmo essa a sua grande vantagem sobre outros regimes.

Publicada originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Novembro de 2025 

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