De vez em quando
descobrimos um pedaço de Portugal que nos surpreende de maneira positiva. Não
falo das belas condições naturais em que o país é rico, que essas não dependem
nem são fruto da acção humana, mas de algo que é resultado de trabalho bem feito
na recuperação urbana do que existia antes e que, como quase tudo em Portugal
no que respeita ao turismo, foi durante dezenas de anos estragado e delapidado.
Na costa portuguesa
existem numerosas praias, umas mais conhecidas que outras, mas quase todas elas
sofreram os efeitos de uma urbanização descontrolada e sem qualidade que as
transformaram em imitações de bairros periféricos das grandes cidades.
Mesmo na região
centro, o modelo seguido foi o da máxima ocupação do solo com possibilidade de
obter visão de mar, sem que no desenho urbano seja possível detectar qualquer
diferença relativamente ao usado em qualquer cidade portuguesa isto é, entre o
medíocre e o muito mau.
Quando encontramos
algo que não segue este cânone, a surpresa não é pequena e a satisfação é tanto
maior quanto o trabalho realizado alia eficiência à obtenção de objectivos
adequados.
É o que sucede numa
das praias talvez menos badaladas da região centro, a Praia da Tocha, no
concelho de Cantanhede. A imagem do que era antigamente esta praia surge com
grande nitidez no filme “Uma abelha na chuva” de Fernando Lopes realizado sobre
o romance homónimo de Carlos de Oliveira em que os palheiros da Tocha foram
usados como cenário. O filme é de 1971 e, para além dos aspectos sociais e
políticos inerentes à própria obra literária em que se baseia, impressiona a
pobreza profunda associada aos moradores dos palheiros, num tempo ainda não tão
afastado dos dias de hoje quanto a sua visão nos poderia levar a pensar.
Claro que a Tocha
não poderia ficar alheia à procura de praia que se verificou a partir dos anos
70/80 do século passado, bem como da pressão urbanística que tal provocou. Há
ainda sinais disso, quer no tipo de construção feita e num certo abastardamento
dos velhos palheiros, quer mesmo no desenho da ocupação do solo, melhor
dizendo, na falta dele. Mas nos dias de hoje tudo isso está em vias de ser
completamente ultrapassado. Tem havido uma intervenção competente, séria e
essencialmente muito cuidadosa, que veio dar à Tocha uma organização urbana de
grande qualidade, que bem pode servir de exemplo a muitas das estâncias
balneares da nossa costa atlântica.
Quer nas antigas
zonas construídas, sempre paralelamente à costa, quer nas mais recentes, foram
consideradas numerosas passagens para peões e ciclistas, que facilitam o acesso
à praia, a partir de qualquer lugar. Os muros entre as edificações e entre elas
e os arruamentos são inexistentes nas zonas novas ou de reduzida altura nas
mais antigas. As edificações surgem assim de forma quase natural no espaço
urbano, não obrigando as pessoas a grandes percursos à volta delas nas suas
deslocações, criando uma grande transparência no espaço público, tão raro entre
nós.
Os numerosos
espaços públicos assim surgidos estão ocupados com relvados e jardins à volta
dos percursos pedonais e, ao contrário do que é habitual em Portugal, não foram
abandonados após a sua construção, surgindo todos eles verdes e cheios de
canteiros com flores. Há quem repare neste aspecto e, notando o cuidado raro no
tratamento de relvados, arbustos e flores, comente que as equipas de manutenção
são praticamente todas elas femininas, o que explicará tal modo de acção.
Não se pense que
houve gastos excessivos nos revestimentos dos percursos pedonais, todos eles
realizados com materiais económicos, mas confortáveis, daí no texto desta
crónica ter utilizado o termo eficiente. Várias ciclovias completam a oferta
aos amantes da bicicleta.
Para além da praia que
dispõe de apoios de grande qualidade, à semelhança do que se passa hoje em
todas as nossas praias devido à competente acção das autoridades ambientais nos
últimos anos, a Praia da Tocha oferece ainda uma zona de pinhal com a sua
frescura, dotada de todos os apoios aos utentes que aí pretendam almoçar e passar
uma tarde depois da manhã de praia.
Surpreendente pela
qualidade de toda a sua organização, a Tocha é hoje uma pérola da nossa costa
atlântica, bem longe do cenário do filme de Fernando Lopes, de que resta a
pesca artesanal-arte xávega, num contexto diferente, mas bem merecedor da nossa
atenção.