Em muitos países democráticos existe a tradição de os dirigentes políticos,
após o exercício de funções de grande relevância, escreverem as suas memórias
em que descrevem factos passados, o relacionamento com outros agentes e os
sentimentos perante as situações que viveram.
Entre nós, não se tornou ainda habitual que os
dirigentes políticos escrevam as suas memórias. Eventualmente, como fez o
antigo Presidente Jorge Sampaio, participam na elaboração das suas biografias,
através da colaboração de terceiros. Contudo, temos que convir na grande
diferença entre a autoria de memórias na primeira ou na terceira pessoa.
Podemos atribuir esta situação portuguesa a várias causas, desde pessoais a
sociológicas. Na realidade, não será fácil passar toda uma vivência pessoal ao
papel, o que exige a tomada permanente de notas durante o exercício do cargo e
uma posterior disponibilidade pessoal para assumir a tarefa dessa escrita, que
dá muito trabalho. Também é bem conhecida, entre nós, a inexistência de uma
cultura de avaliação do trabalho feito, mesmo de prestação de contas de
dirigentes como é um facto corrente nos países de cultura anglo-saxónica. Por
outro lado, há altos responsáveis políticos que afirmam não escrever memórias
para preservar o presente e o próprio futuro, já que a sua acção se verificou
em tempos tão conturbados que o conhecimento de alguns factos poderia ser
desestabilizador. É o caso de Ramalho Eanes, cuja presidência ainda coincidiu
com o PREC e também com os primeiros tempos de normalização democrática. Penso,
no entanto, que ficamos todos a perder com isso, embora Eanes esteja no seu
pleno direito ao tomar essa posição.
A excepção portuguesa notória é Cavaco Silva. Publicou as suas memórias de
quando foi Primeiro-ministro e acaba agora de publicar o segundo volume sobre o
seu exercício da presidência da República. Os motivos para essa publicação são
assumidos pelo próprio como uma exigência ética pessoal de prestação de contas
à boa maneira anglo-saxónica. Eu acrescentarei que, em minha opinião, um
dirigente político tão atacado como ele sempre foi, à esquerda e mesmo à
direita, não quis deixar passar a oportunidade de fornecer, para memória
futura, a “sua verdade” sobre esses tempos. Se não o fizesse, correria o risco
de, no futuro longínquo e mesmo próximo, a sua acção vir a ser descrita apenas
pelo que dele dizem os seus adversários, passando ao lado daquilo que ele,
eventualmente, achasse que seria mais justo dizer.
Mas não me lembro de que a publicação de um livro de memórias políticas
tenha provocado de imediato tantas reações negativas, mais parecendo mesmo ter
caído o Carmo e a Trindade. Qual o motivo imediato de tanta contestação? Falta
de sentido de Estado, denuncia Carlos César que acrescenta: “mostra atitude de
devassa e delação presidencial”. César confessa assim não ter gostado da
revelação de situações descritas por Cavaco relativas às reuniões semanais dos
primeiros-ministros socialistas com Cavaco Silva, enquanto presidente da
República. Parece considerar essas reuniões como se se tratasse de conversas
entre amigos à mesa do café e não relações institucionais entre Governo e presidência
da República, logo de extrema responsabilidade. Já António Costa diz que não
comenta memórias presidenciais, porque tem sentido de Estado. E lá vem outra
vez o sentido de Estado que passa assim a ser como a água benta: cada um toma a
que quer. Depois, acrescentou-se que o período de tempo a que este volume se
refere ainda é muito recente, pelo que o autor deveria deixar passar mais uns
anos; a esta crítica quase apetece responder que depois de morto ninguém
escreve memórias.
É evidente que o autor destas memórias continua a suscitar uma rejeição
profunda por parte de determinados sectores da sociedade portuguesa. Não por
acaso, são os mesmos que por ele foram impiedosamente derrotados nas urnas em
três eleições legislativas, sendo duas delas com maioria absoluta e duas
eleições presidenciais à primeira volta. Claro que também perdeu umas
presidenciais, mas das derrotas não reza a História, como se sabe. E, como se
costuma dizer, o povo, em quem reside a legitimidade democrática, tem sempre
razão quando vota, quer nas suas escolhas, quer nas suas rejeições.