A ópera bufa a que
os portugueses têm sido obrigados a assistir e que se chama “furto de Tancos” é,
como tantas vezes sucede nas peças de teatro, mesmo aquelas que à superfície
parecem ligeiras, um mergulho nas profundezas de uma sociedade, no caso a portuguesa
de 2018. Tem-nos sido dado a observar a mais completa inexistência de valores
que é suposto serem a base de funcionamento de qualquer sociedade. E isto, no
núcleo central do último reduto da defesa da soberania, que são as Forças
Armadas. Um caso que à partida teria uma gravidade limitada veio a ter
desenvolvimentos complexos, envolvendo oficiais das mais altas patentes, até
chegar ao próprio gabinete do ministro da Defesa que acabou por se demitir. Há
Majores, Coronéis e Generais a desmentirem-se mutuamente, a apresentarem
relatos contraditórios e documentos por assinar, enquanto as chefias máximas
militares se encolhem.
Claro que a situação
política e o próprio ambiente social do país não são inseparáveis de tudo o que
se está a ver. Não vale a pena espantarmo-nos se o deslaçar da sociedade que se
observa um pouco por todo o lado tiver também já corroído alguns sectores das
Forças Armadas, precisamente aqueles que estão em contacto directo com o
Governo.
É que as coisas
estão muito mais ligadas do que às vezes possa parecer. O país tem assistido a
uma encenação directamente decorrente da solução governativa saída das eleições
de 2015. Pela primeira vez na democracia portuguesa, quem ganhou as eleições
não formou governo, tendo o partido Socialista criado uma disrupção política ao
formar um Governo minoritário com o apoio parlamentar dos partidos mais à
esquerda, contrariando tudo o que se afirmara até então. A solução, que é
evidentemente legítima, democrática e constitucional, introduziu contudo uma
forma de governar que, se muitos consideram hábil, mais não é do que um jogo de
espelhos em que os três partidos que sustentam o governo vão dançando as suas
próprias danças, juntando-se no momento da aprovação dos Orçamentos de Estado.
E os enganos
constituíram-se assim na essência da governação. Desde que o primeiro Orçamento
de 2016 voltou para trás da Comissão Europeia, o Governo mudou em 180º o rumo
que tinha sido definido pelo PS nas eleições e assumiu o cumprimento dos
critérios orçamentais ditados pela União Europeia. Claro que, perante essa
mudança, Wolfgang Schauble (lembram-se dele?) e o BCE prestaram toda a ajuda preciosa
no controlo das taxas de juro. A execução dos orçamentos seguintes veio mostrar
como esses objectivos foram conseguidos: queda abrupta no investimento público,
cativações um pouco por todas áreas governativas e uma carga fiscal inaudita
baseada essencialmente em impostos indirectos a que ninguém pode fugir. A
aprovação dos orçamentos é um momento de superior hipocrisia política, porque
já se sabe que a taxa de execução do investimento previsto dificilmente
superará os 50% e a libertação das cativações previstas dependerá apenas da
aproximação do objectivo do défice e não das necessidades do país. E mesmo o
proclamado grande crescimento da nossa economia afinal nunca passa além de ser dos
mais fracos da União Europeia.
Perante toda esta
realidade, que desmente a retórica governativa, os partidos da esquerda parlamentar
calam-se e consentem inclusivamente a degradação generalizada nos serviços
públicos. Situação que alguém terá que inverter num dia destes, à custa de
dinheiro que não existe, a não ser com aumento da dívida pública que, essa,
continua a níveis estratosféricos.
Em política as
atitudes têm consequências que vão muito além do que às vezes se imagina. As
pessoas comuns apercebem-se perfeitamente do ambiente hipócrita de enganos e
fantasias criado no país, origem de um sentimento generalizado de apatia e
indiferença. Não será por acaso que nos últimos dias se soube que Portugal
surge na quinta posição entre os países mais corruptos. E sabe-se que de um ambiente
de falsidade generalizada nunca surgiu nada de bom; antes pelo contrário, é o
terreno fértil para o germinar de nacionalismos e surgimento de “salvadores
providenciais”, tantas vezes trazidos pelos próprios votos da democracia.
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