segunda-feira, 29 de abril de 2019

SOLIDÕES


Ouvimos frequentemente dizer que a solidão mental é muito pior do que a solidão física. E, de facto, sentimo-nos-muitas vezes mais sozinhos no meio de uma multidão do que quando temos, por exemplo apenas a companhia de um livro ou de uma peça de música. Há situações de solidão física, como será a de prisão como castigo judicial, ou a dos navegadores solitários que são, apesar de tudo, susceptíveis de ser compreendidas por qualquer pessoa. E depois, há situações de solidão que podemos considerar limite, que estão para lá do que podemos considerar compreensível.
No próximo mês de Julho passam 50 anos sobre a primeira ida do Homem à Lua. A missão Apollo 11 transportou os astronautas Neil Armstrong e Buzz Aldrin que, no histórico dia 20 de Julho de 1969, pisaram solo lunar após a descida no Módulo Lunar Eagle, proporcionando ao primeiro que o fez, Neil Armstrong, a célebre frase: “um pequeno passo para homem, um salto gigantesco para a humanidade”. E, de facto, a descida na Lua, as 22 horas que lá passaram, o regresso ao Módulo de Comando e o definitivo regresso à Terra constituíram algo de surpreendente e grandioso que desde então povoa o imaginário de quem teve a oportunidade de seguir a saga em directo pela televisão a preto e branco, como foi o meu caso.
Mas, nessa missão, houve mais uma experiência sentida pela primeira vez por um ser humano e que raramente é referida quando se lembra a Apollo 11. Naquela missão havia um terceiro homem, Michael Collins que pilotou sozinho o Módulo de Comando Columbia enquanto os dois companheiros levavam a cabo os seus trabalhos na superfície lunar, que incluíram a recolha de mais de 20 Kg de amostras do solo que trouxeram para a Terra. Durante todo esse tempo, Collins orbitou a Lua por diversas vezes. E em cada uma delas passou por detrás do nosso satélite natural, ficando com a Lua entre ele e a Terra. Em consequência, para além de não poder visualizar a Terra, ficou igualmente sem possibilidade de estabelecer comunicações fosse com quem fosse. De um lado tinha aquilo a que se costuma chamar o lado oculto da Lua que nunca se observa da Terra e do outro a profundidade absoluta do infinito. Caso algo lhe sucedesse a si ou ao Módulo de Comando durante os 47 minutos de duração desses períodos, estava absolutamente impedido de contactar a Terra ou mesmo os seus companheiros que com ele contavam para o regresso à Terra. Era a solidão absoluta e um silêncio total que alguém já qualificou como sinistro, e que jamais alguém poderia ter sentido antes.
De facto, na missão de exploração de dois meses antes, a Apollo 10, a nave havia também passado por detrás da Lua, mas nela viajavam três astronautas não se verificando, portanto, a mesma sensação de solidão e de responsabilidade que Michael Collins haveria de sentir.
E o relativo “esquecimento” de Michael Collins relativamente aos seus companheiros de missão é tão mais injusto, quanto este astronauta era de facto alguém muito especial. Era ele o astronauta encarregado de pilotar a Apollo 11 até à Lua e regressar, mas também de executar a delicada operação de acostagem da Eagle à Columbia no regresso da Lua, o que ele seria capaz de fazer mesmo manualmente, caso falhassem os instrumentos automáticos. A sua importância decisiva na Apollo 11 manifestou-se até no desenho do símbolo da missão, uma águia voando sobre a Lua com um ramo de oliveira no bico, que foi da sua autoria.
Após o regresso à Terra, Collins reconheceu que não podia negar o sentimento de solidão. Vincou que “assim que passava para detrás da Lua o contacto rádio com a Terra desaparecia de súbito, ficando sozinho, verdadeiramente sozinho e absolutamente isolado de qualquer forma de vida conhecida”.
Cinquenta anos depois, continua a parecer quase mágico que homens tenham descido na Lua e que outros a tivessem orbitado na mais completa solidão. Apesar de tudo, um sinal de que a Humanidade é capaz de se exceder de forma positiva. E de que os seres humanos, na sua individualidade, são capazes de ultrapassar os medos mais ancestrais através de demonstrações de coragem e capacidade de enfrentar as situações mais desafiantes, sejam elas interiores ou exteriores ao ser.

Ouvir:  https://youtu.be/FpOEN93LX-E

E ainda:  https://youtu.be/KBt36Bw7_8Q

Publicado originalmente na edição do Diário de Coimbra de 29 de Abril de 2019

Otis Redding - I´ve Got Dreams To Remember

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Glenn Gould and Leonard Bernstein: Bach's Keyboard Concerto No. 1 (I) in...

O DÉFICE E A POLÍTICA


O que temos. Como sabemos, quando as receitas do orçamento de Estado são inferiores às suas despesas, existe défice orçamental. O Governo português chegou ao final de 2018 com um défice de 0,7% do PIB. Para este ano, as previsões apontam para um défice entre 0,2% (Governo) e 0,6% (FMI). Isto é, estamos num ponto em que praticamente não precisamos de aumentar a dívida pública para cobrir o défice e, havendo algum crescimento económico, a dívida pública poderá mesmo começar a diminuir em volume e já não apenas em função do PIB.
O que andámos para aqui chegar. O défice das contas públicas tem sido um dos maiores problemas nacionais das últimas décadas lembrando-se, por exemplo, a festa que o governo de então fez em 2008 quando apresentou um défice de 2,5% do PIB como o mais baixo de décadas. Embora pouco brilhante, foi sol de pouca dura. Logo em 2011 trepou para uns estratosféricos 11%, a que se seguiu a desgraça que se sabe. Com a austeridade violenta trazida pela troika chamada por Sócrates, o défice foi diminuindo até ao valor de 4,3% em 2015. Desde então, já com o actual governo, a trajectória decrescente do défice foi contínua, até chegar em 2018 ao valor acima indicado de 0,7% do PIB.
Como foi conseguido. Ao longo desta legislatura, a despesa corrente primária cresceu 7 mil milhões de euros, de 71 em 2015 para 78 mil milhões em 2019. Os impostos foram praticamente neutros, não havendo diminuição da carga fiscal, dado que as reduções em impostos directos foram compensadas com impostos indirectos que afectam todos os contribuintes, nomeadamente nos combustíveis. Tal significa que se teve que compensar com reduções noutras despesas. Foi o caso do investimento público que caiu de 2,3% PIB em 2015 para 2% em 2018. Por exemplo, nesta legislatura foi transferido menos dinheiro para o SNS do que entre 2011 e 2015, como mostrou um relatório recente do Tribunal de Contas. Esta prática continua tendo, na semana passada, sido anunciado um novo corte no investimento público de mais de 470 milhões ao previsto no OGE 2019. As cativações ajudaram, significando cerca de 0,3%. A descida dos juros da dívida pública deu uma ajuda crucial, significando um corte de cerca de 0,8% nas despesas. Em resumo, a redução do défice resultou, nestes 4 anos, em grande parte da diminuição da despesa com os juros da dívida e da redução drástica no investimento público. Todos percebemos que esta diminuição de despesa é conjuntural, enquanto os acréscimos na despesa (essencialmente pessoal e prestações sociais) que se verificaram são fixos. Isto é, a descida do défice corre o risco de não ser sustentável, estando sujeita ao crescimento económico que, como sabemos, é muito dependente do que se passa na Europa e no mundo. As importações têm tido um peso crescente, enquanto o peso das exportações pouco aumentou nestes últimos 4 anos, pelo que a balança de pagamentos nos é crescentemente desfavorável.
O agora e o depois. Todos nos lembramos da frase “há mais vida para além do défice”. Historicamente, a Esquerda tem tido ao longo dos tempos, relativamente à necessidade de controlo do défice, a posição ideológica que aquela frase bem resume. Ironicamente, acabou por ser com um governo do Partido Socialista apoiado na Assembleia da República pelo Partido Comunista e pelo Bloco de Esquerda que praticamente se eliminou o défice das contas públicas. Se essas contas são sãs como defende o Ministro das Finanças, isso já é outra conversa, como acima se vê, trazendo o investimento público para um nível insustentável no futuro. Mas as esquerdas, todas elas, acabaram por ser completamente comprometidas com a política da contenção do défice e com os processos utilizados para lá chegar, por mais que digam o contrário. Já a Direita viu aquela que era uma das suas posições de princípio passar a ser, daqui para diante, assumida por todos. A grande vantagem é que, finalmente, as discussões políticas poderão passar a fazer-se entre alternativas completamente dentro de parâmetros europeus actuais abandonando velharias ideológicas já atiradas para o lixo da História em todo o lado. Tal poderá mudar tudo e colocar finalmente Portugal a caminho da “outra extremidade” da listagem de riqueza do países europeus, ao contrário do que acontece há décadas e ainda hoje.

Publicado originalmente na edição do Diário de Coimbra de 22 de Abril de 2019

quinta-feira, 18 de abril de 2019

CRISE DOS COMBUSTÍVEIS

A ouvir Paulo Baldaia na TSF sobre a greve dos motoristas de transportes de matérias perigosas que, em três dias, quase pôs o país de pantanas.
Em resumo, o que ele disse: temos um grande ministro chamado Pedro Nuno Santos; a culpa do sucedido é do governo de Passos Coelho.
Não é preciso dizer mais nada sobre a independência de alguma classe jornalista.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

BREXIT: já todos perdemos


O dia 29 de Março já lá vai, 12 de Abril idem e agora será até 31 de Outubro. Esta foi a data limite definida no Conselho Europeu da passada quinta-feira para se concretizar a saída do Reino Unido da União Europeia. Foi o consenso mínimo entre o presidente francês que pretendia um prazo mais curto e os restantes líderes europeus dispostos a dar aos britânicos o prazo que quisessem. Desta forma, o Reino Unido terá que realizar ainda as eleições para o Parlamento Europeu no final de Maio mas, no caso de não haver mais adiamentos, terá que sair antes da tomada de posse da nova Comissão Europeia.
Penso não andar muito longe da realidade se disser que todo este processo era inimaginável, mesmo depois do referendo de Junho de 2016 que ditou a vontade de saída dos cidadãos britânicos da União Europeia. O prazo ditado pelo Artigo 50º encontra-se ultrapassado, o que está aceite pelos membros da EU, não tendo o governo dirigido por Theresa May conseguido fazer aprovar no parlamento britânico o acordo negociado com a EU, mas não havendo também lugar a uma saída sem acordo, aquilo a que se convencionou chamar “hard brexit”.
Por um lado, os políticos britânicos nunca se conseguiram entender quanto ao melhor processo de organizar a saída. A primeira-ministra May vê-se a braços com as críticas dos defensores da linha dura do seu partido Conservador que, sistematicamente, a levam a perder as votações no parlamento. Do lado do partido Trabalhista, é visível uma fome de alcançar o poder através de eleições imediatas, não se percebendo uma linha clara no que diz respeito à decisão sobre o Brexit. A hipótese de segundo referendo tem sido liminarmente rejeitada por May, coerente com a tradição democrática britânica de escrupuloso respeito pela vontade popular livremente manifestada pelo voto. Assim se chegou a um beco cuja saída, seja ela qual for, não se fará sem graves consequências para o futuro do que hoje é o Reino Unido.
Do lado dos 27, e pela primeira vez, houve discussão séria sobre a posição a adoptar face ao pedido britânico de adiamento do Art. 50º. O presidente Macron manifestou claramente estar farto deste processo que se sobrepõe à vida normal da União Europeia e vem agora falar de “renascimento europeu”. Mas a verdade é que ninguém obrigou o Reino Unido a sair da União, parecendo ser consensual que todos os outros países membros prefeririam que esta questão nem se tivesse colocado. Do lado dos 27 não se discute a possibilidade de renegociar o acordo alcançado o governo do Reino Unido, pelo que do seu lado, apenas se espera que os britânicos aprovem o texto acordado. Este acordo já foi levado aos Comuns por Theresa May por três vezes, tendo sido sempre rejeitado, pelo que a esperança mais ou menos expressa pelos líderes europeus e da própria União é que os britânicos acabem por enveredar pelo caminho de um segundo referendo. No fundo, esperam que suceda o mesmo que noutras situações anteriores em que segundos referendos vieram a aprovar o pretendido pelos órgãos comunitários. Não me parece nada que isso venha a suceder, em primeiro lugar pela tradição democrática britânica e em segundo lugar porque nada leva a supor que o resultado viesse a ser diferente do do primeiro.
As declarações dos líderes europeus, aliás, não ajudam em nada a mudar o sentimento do povo britânico. É o caso das afirmações do presidente do Conselho Europeu Donald Tusk quando reconhece que o seu sonho secreto é que o Brexit nunca venha a suceder no que pode ser entendido como uma pressão inadmissível pelos britânicos sempre ciosos da independência do seu país. Mas Ângela Merkel foi no mínimo incoerente ao reconhecer que o parlamento alemão Bundestag também nunca aprovaria o acordo alcançado, se fosse esse o caso. Isto é, há na União Europeia quem seja de opinião que aquele acordo é humilhante para o Reino Unido e que a União aproveitou as negociações para mostrar a todos os seus membros que a saída é uma opção a evitar, seja por quem for.
Infelizmente, a questão do Brexit está a mostrar o pior da União Europeia: a fragilidade das opiniões nacionais perante o Conselho e a Comissão, a incapacidade de negociar de forma decente e o tratamento desonroso a quem, legitimamente, a pretender abandonar. E isso é mau para todos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Abril de 2019