segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O ESTADO E A VIDA


Não se pode abordar a História da Humanidade sem ter uma percepção clara da evolução das relações entre os indivíduos e o poder organizado em cada momento que, a partir de certa altura passou a ser designado por Estado. Desde os tempos dos simples chefes de clãs até aos faraós do Egipto, imperadores chineses ou reis europeus do chamado Antigo Regime, havia algo de comum que era a subordinação dos indivíduos perante os chefes, incluindo a própria vida. Durou muitos séculos a redução do poder do Estado sobre a vida dos indivíduos (que só a partir de certa altura se podem chamar cidadãos), o que se reflectiu na evolução da pena de morte. Por exemplo, em Portugal, a pena de morte só foi totalmente abolida com a Constituição da República Portuguesa de 1976. Antes disso, houve um breve período em que tal também se verificou a partir de 1911 mas, com a entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra em 1916, foi readmitida pelo crime de traição em plena guerra, situação que se manteve até 1976.
Portugal costuma orgulhar-se de ter sido o primeiro país a abolir a pena de morte, em 1867, mas tal verificou-se apenas para crimes civis, mantendo-se a excepção dos crimes de traição em situação de guerra.
Há muitos países onde, ainda hoje, o Estado se arvora o direito de retirar a vida a pessoas como castigo pela perpetração de determinados crimes de grande gravidade. Contudo, o rumar da História tem sido no sentido de se considerar que a vida das pessoas é algo de que os estados não podem dispor, seja a que título for.
Não foi assim há tanto tempo que a Alemanha nacional-socialista utilizou as mais diversas razões para justificar a retirada de vida a milhões de pessoas, fosse por razões políticas, religiosas, pretensamente raciais, sociais ou mesmo por diferenças pessoais. Para além da eutanásia, na altura chamada «morte misericordiosa», a eugenia foi particularmente odiosa, pretendendo «purificar a raça», pelo que todos os que tivessem algum pormenor pessoal tido como defeito, viam-se objecto das «experiências médicas» mais inacreditáveis que acabavam na morte dos infelizes em condições desumanas. Não foi apenas o Holocausto que definiu os que o levaram a cabo, não podendo ser esquecido, antes pelo contrário, recordado como um dos períodos mais negros da humanidade. As práticas de eugenia levadas a cabo pelos nazis devem também ser motivo de discussão e ser levadas ao conhecimento do maior número de pessoas de hoje. Deveriam ainda ser clarificadas e responsabilizadas as práticas de eugenia, não tão extremas, mas no mesmo sentido, que continuaram durante dezenas de anos em diversos países tidos como faróis da civilização, mesmo na Europa nórdica.
Em causa está, sempre, a ideia que muitos estados ainda hoje mantêm, de que a vida dos cidadãos é um bem de que o Estado pode dispor. Foi só depois do fim da Segunda Grande Guerra, em 1948, que surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, subscrita pela maioria dos países. O artigo terceiro da Declaração estipula que: «Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal».
Foi este o momento histórico em que a maioria dos estados prescindiu de dispor da vida dos indivíduos. Em vez disso, estão obrigados a garantir a todas as pessoas aqueles direitos designados como universais, que são a vida, a liberdade e a segurança pessoal, por esta mesma ordem, isto é, com a vida à cabeça. Claro que, como todos os progressos civilizacionais, pelo facto de estar no papel isso não significa que, em primeiro lugar esteja a ser praticado por todos os que nele se comprometeram, em segundo lugar que esteja garantido para sempre.
E é isso que temos visto nos últimos dias, em Portugal, na discussão sobre a eutanásia. Percebemos que o direito das pessoas à vida não está garantido para sempre, nem em todo o lado, mesmo entre nós, como mostra a declaração por uma deputada à Assembleia da República de que «a vida não é um direito absoluto». Isto, em Portugal, no ano de 2020. Pelo que se percebe, em determinadas circunstâncias, o Estado pretende voltar a arrogar-se o direito de decidir sobre matar uma pessoa, quem o pode fazer e como. Trata-se de voltar a abrir uma porta que, para segurança de todos, mais valia continuar fechada. E nem é preciso ir muito longe para perceber o que pode entrar por essa porta, como já sucede na Holanda e na Bélgica. Não me venham dizer que isso é progresso civilizacional. É exactamente o oposto, constituindo mesmo um sinal perturbador de declínio civilizacional.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2020

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Andy Williams ~ The Shadow Of Your Smile (Live)

AMAR A CIDADE QUE (TAMBÉM) SE ODEIA


Qualquer cidadão que se preocupe com a sua cidade, ainda mais no caso de Coimbra, desenvolve com ela uma relação necessariamente afectiva, cuja substância cresce muito para além de preocupações técnicas ou político-ideológicas. E essa relação com a Cidade surge, ainda que tantas vezes contraditoriamente, a níveis diversos, seja com a evolução temporal do espaço público e em geral, do urbanismo, seja com as próprias pessoas que a habitam, tantas vezes sem se darem conta do que as rodeia, e ainda menos se questionarem sobre as razões da evolução.
É assim que, no que me diz respeito, amo a memória das ruas da Baixa de Coimbra com pessoas a atropelarem-se, umas a ver as montras e outras apenas a passar nos seus trânsitos entre a Estação Nova e a zona da Câmara Municipal. Guardo com particular carinho, algures num qualquer recanto cerebral, a visão da rua que, em criança, conhecia como rua dos bazares, com montras cheias de brinquedos em particular milhares de miniaturas de automóveis, pistas eléctricas de comboios e de carros, com que apenas podia sonhar. Era também a rua do «hospital das bonecas», bem conhecido das minhas irmãs. Sei hoje que a rua se chama Adelino Veiga, «que foi operário honesto e poeta de mérito» e odeio ver como se encontra actualmente abandonada e triste, sem bazares e sem pessoas.
Amo a cidade aberta no sec. XIX sobre a antiga Cerca de Sta Cruz desde a Sá da Bandeira aos Arcos do Jardim, com continuação pela alameda Júlio Gonçalves, sem réplica urbanística posterior de qualidade urbanística equivalente. Odeio a incapacidade de recuperar o Jardim de Sta Cruz para uma normal e aberta vivência mas amo a rua que, ao lado, os jacarandás que a bordejam todos os anos por volta de Maio vestem com as cores da Cidade. E amo o Jardim Botânico que distingue Coimbra com a sua excepcionalidade e, sobretudo, é o palco de memórias guardadas. Mas odeio os mostrengos construídos na Av. Sá da Bandeira, aguardando que alguém se lembre de utilizar o dinheiro entregue aquando da construção do golden, destinado ao parque de estacionamento da Praça da República, para a compra dos 4 pisos superiores do próprio edifício e sua demolição.
Amo a vitalidade que a juventude universitária transmite à cidade, com a sua paleta de características afirmativas pela diferença, seja pela liberdade cosmopolita de aspecto exterior, seja pela capacidade de apontar caminhos novos nas mais diversas áreas do pensamento, da ciência, das artes e mesmo da intervenção social. Mas odeio a conservadora e muito hipócrita sociedade da má-língua da nossa cidade que se compraz em desfazer naqueles que considera inferiores e em repassar mentiras e boatos, agindo como se a Inquisição não tivesse terminado há, passam no próximo ano, 200 anos. Amo mesmo algo que já odiei, o aparentemente ingénuo tratamento por Senhor Doutor dado a qualquer homem que se apresentasse de fato e gravata e que na realidade escondia uma certa malandrice futrica que se aproveitava da célebre doutorice coimbrã. E odeio a falta de oportunidades proporcionadas pela cidade aos seus filhos (ainda que muito bons) que se vêem obrigados a deixá-la para construir as suas vidas noutras paragens.

Amo as diversas imagens que o rio Mondego nos oferece, como a névoa deslizante sobre as suas águas matinais ou o reflexo da iluminação da colina sagrada em noites amenas, tal como amo a recuperação de Sta. Clara-a-Velha e a sua envolvente, a ponte pedonal Pedro e Inês e o Exploratório.
Mas odeio que o parque verde esteja há anos sem recuperação dos estragos nem limpeza e que a margem esquerda sirva para parqueamento de auto-caravanas, sem condições higiénicas para tal, quando Coimbra até dispõe de um parque de campismo de 5 estrelas.
Sim, amo o Penedo da Saudade e as memórias pessoais e de todos os que lá deixaram pedras evocativas da sua passagem pela Universidade, reveladoras de um encantamento que se sobrepõe a todas as agruras por que passamos durante a vida.
Como acontece com as pessoas que amamos, a relação com Coimbra pode ser de tal intensidade que até as imperfeições que nela possamos odiar ou apenas desgostar passam, no fundo, a fazer parte do todo como se rugas da velhice fossem tornando, por isso mesmo, possível «amar a própria cidade que se odeia».

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2020

Ennio Morricone - Man with a harmonica (Once upon a time in the West)