Num dia destes, estava a olhar distraidamente para uma montra de uma loja de artigos electrónicos, quando a minha atenção foi atraída para uma circunstância curiosa: havia uma série de bancadas de marcas de telemóveis e as marcas tinham nomes como XIAOMI, HUAWEI, OPPO, LG, SAMSUNG. São marcas de fabricantes gigantescos de electrónica sofisticada, com algo comum: todas elas são originárias do indo-pacífico. Em consequência, não são americanas nem europeias. Por outro lado, ao andarmos nas ruas, verificamos que automóveis de marcas com nomes coreanos que ainda há poucos anos se distinguiam por um design no mínimo estranho, para ser simpático, são hoje em dia confundidos com facilidade com qualquer carro fabricado em França ou na Alemanha. Terá ajudado que o responsável principal de design da BMW tenha ido trabalhar para a KIA. Quanto à tecnologia, como hoje em dia está completamente difundida, o que dita é o preço de cada classe, não havendo praticamente diferenças entre as marcas tendo o próprio Eng. chefe da secção M da BMW sido contratado pela Hyundai. No que respeita às marcas japonesas nem se fala, já que se fazem notar pela qualidade de construção e design desde há décadas, nada ficando a dever aos carros europeus ou americanos.
Utilizei os exemplos de dois produtos importantíssimos a nível da indústria e comércio mundiais, para mostrar como o mundo está a mudar com grande rapidez, a caminho de a zona do mundo com maior importância económica ser o indo-pacífico. Aliás já o é, se contarmos com os EUA que também têm costa para o oceano Pacífico. A evolução vertiginosa da China vem acrescentar mais um player económico mas que poderá não demorar muitas décadas a ser a maior economia mundial dada a sua dimensão geográfica e populacional. Infelizmente, esta evolução é acompanhada por uma perda pela Europa do seu antigo lugar de centro económico e político do mundo.
Acontece que a importância económica nunca anda longe do poderio militar, qualquer que seja a base ideológica que sustenta as potências. A China não é excepção, nunca o foi ao longo da sua história, longa de milhares de anos. A sua actual expansão económica, quer através das exportações, quer através da aplicação dos resultados dessas actividades nos mais diversos sectores por todo o mundo, designadamente em redes estratégicas de infra-estruturas condicionadoras de toda a sociedade de que Portugal é um exemplo, tem-se feito acompanhar por um crescimento gigantesco da sua capacidade militar. Um dos vectores fundamentais da sua afirmação militar é através dos mares, nomeadamente Índico e Pacífico, o que se reflecte no desenvolvimento da sua marinha de guerra e mesmo na construção de pontos de apoio, nas contestadas ilhas artificiais.
Os possíveis conflitos com as outras potências regionais são evidentes, bastando recordar as antigas guerras com o Japão, mas também as guerras do Vietname e da Coreia, para além da disputa com Taiwan que será aniquilada no dia em perder o apoio americano. É neste contexto, num novo clima de guerra fria, que os EUA, a Austrália e o Reino Unido constituíram um embrião do que poderá vir a ser a «NATO» do Indo-Pacífico, o AUKUS, acrónimo de «Australia, United Kingdom and United States». Recorde-se que o Reino Unido possui as únicas Forças Armadas sedeadas na Europa com capacidade global, capazes de projectar força em qualquer ponto do Mundo, em particular através da sua Marinha. A aliança AUKUS perspectiva colaboração diplomática e tecnológica, desde a cibersegurança à inteligência artificial, para além da colaboração militar.
Na sequência imediata deste acordo, a Austrália abandonou uma encomenda aos estaleiros franceses da Naval Group de doze submarinos convencionais de propulsão diesel-eléctrica, no valor de várias dezenas de milhares de milhões de euros. Em vez disso, a Austrália comprará novos submarinos, mas de propulsão nuclear, ao Reino Unido, o que implica uma transferência inédita de conhecimento reservado aos utentes de energia nuclear.
Como era de esperar a França reagiu com veemência à notícia, no que foi seguida por posições da União Europeia e países europeus, como aconteceu também com Portugal. No que respeita à França, a reacção é compreensível, já que foi uma empresa francesa, a Naval Group, que perdeu um contrato gigantesco. Já no que respeita à União Europeia, o que se trata é de uma fuga à realidade: os europeus vivem em segurança à sombra da protecção militar americana desde o fim da II Grande Guerra. A União Europeia não tem capacidade militar de resposta seja a que ameaça for, principalmente depois da saída do Reino Unido. Com uma sociedade envelhecida, imersa em políticas financeiras e monetárias de curto prazo, energicamente cada vez mais dependente da vizinha Rússia, este acontecimento veio mostrar que tem de mudar de vida. Assim os seus responsáveis políticos o vejam, em vez de fazerem figuras de Calimeros coitadinhos a nível internacional.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Setembro de 2021
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