segunda-feira, 22 de julho de 2024

Alexandre Linhares Furtado: Cidadão, Médico, Homem de Cultura

 


No Sábado passado tive a oportunidade de assistir a um Concerto de Homenagem ao Prof. Linhares Furtado organizado pela sua Orquestra Clássica do Centro. Não por coincidência, mas por uma conjugação feliz, o concerto começou com uma interpretação magnífica da Sinfonia nº 9 de compositor Antonín Dvořák. Nascido na Boémia, perto de Praga, em 1841 Dvořák tornou-se conhecido por integrar influências folclóricas da sua terra natal na música sinfónica que compunha. A dada altura da sua vida, e durante um curto período, dirigiu o Conservatório de Nova Iorque e durante essa estada na América compôs a sua Sinfonia nº 9. Por esse motivo, embora seja evidente a inspiração das danças e músicas da sua terra natal, essa obra amada por melómanos de todas as paragens tornou-se conhecida como “Sinfonia do Novo Mundo”.

Pelo que fica escrito percebe-se como a “Sinfonia do Novo Mundo” não podia deixar de ser uma das composições favoritas do Prof. Alexandre Linhares Furtado que, ao longo da sua vida como médico e como cientista, desbravou caminhos para um novo mundo na sua área.

Em 20 de Julho de 1969, passam agora 55 anos, o Prof. Linhares Furtado realizou uma cirurgia inédita em Portugal, a primeira transplantação de um rim com dador vivo. Foi a primeira de muitas cirurgias inéditas que levou a cabo, algumas a nível nacional, outras a nível mundial. A nível nacional, contam-se a primeira colheita de rins de cadáver em 1980 ou a primeira transplantação com rim de cadáver, tal como a primeira transplantação renal pediátrica, ou a primeira transplantação nacional de fígado com insuficiência hepática aguda. A nível mundial a primeira transplantação mundial sequencial PAF bem como a primeira transplantação de fígado sequencial tripla, a partir de um só enxerto. Estes são apenas alguns exemplos escolhidos entre as inúmeras inovações introduzidas pelo Prof. Linhares Furtado na área da cirurgia. Um amigo, que também é professor de Medicina, costuma referir que, dentro da área da cirurgia, há uma em especial que se distingue de todas as outras pela sua dificuldade: a do fígado. Costuma também dizer-se que alguns cirurgiões se distinguem pela sua habilidade a trabalhar com as mãos e o Prof. Linhares Furtado sempre foi considerado superior nesse aspecto. Mas há algo que o distingue: o ineditismo a nível mundial de muitas intervenções cirúrgicas, só possível por uma investigação científica de grande nível e uma superior capacidade de gestão de equipas.

A cirurgia que deu origem à homenagem em curso durante to


do este ano só foi possível pela competência profissional e científica do Prof. Alexandre Linhares Furtado, mas também pela sua determinação e capacidade de encontrar respostas em outras áreas necessárias para encontrar soluções completas. Na realidade, em 1969 a legislação existente em Portugal impedia a realização daquela intervenção cirúrgica, pelo que o Prof. Linhares Furtado se viu na necessidade de obter apoio jurídico para que tal viesse a ser possível, foi muito difícil, mas conseguiu fazê-lo.

Como tantas vezes sucede com personalidades que se distinguem na ciência ao mais alto nível, o Prof. Linhares Furtado tem outras preocupações intelectuais, designadamente a nível artístico. É conhecido o seu gosto pela pintura, patente através das suas telas que tantas vezes reflectem de forma artística e simbólica as suas intervenções cirúrgicas, mas também retratam os seus familiares próximos de que se destaca a sua querida e saudosa Dra. Arminda, não esquecendo ainda as paisagens e cores dos seus amados Açores.

Mas há uma manifestação artística que é particularmente do seu afecto e conhecimento profundo, que é a Música, sendo mesmo um melómano conhecedor que coloca música a acompanhar as suas diversas actividades. Não foi, assim, por acaso que se dedicou de alma e coração à OCC que distingue Coimbra no rol das cidades médias europeias com uma orquestra clássica residente, o que é notável e motivo de admiração por quem tem conseguido que isso suceda.

Pelo que acima fica dito a escolha da “Sinfonia do Novo Mundo” de Antonín Dvořák para o concerto de homenagem de sábado passado torna-se simbólica de todo o percurso profissional e científico do Prof. Linhares Furtado. Homenagem devida por Coimbra e pelo país a Alexandre Linhares Furtado por toda uma vida e uma carreira impressionantes ao serviço dos doentes, da Medicina, da Cultura e da Cidadania activa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Julho de 2024

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Haja paz na Justiça


Maior ironia do destino não seria possível. Num momento em que tanto se discute o estado da Justiça em Portugal, em particular a actuação do Ministério Público e da sua dirigente máxima, morreu Joana Marques Vidal, a Procuradora-Geral da República que foi substituída no cargo em 2018 pela actual PGR, Lucília Gago.

Agora que tanta gente louva Joana Marques Vidal, vale a pena recordar o contexto da sua substituição como PGR. Foi sob a sua direcção que avançaram processos com grande impacto na nossa vida colectiva, mesmo para além da política. Recordo a Operação Marquês que envolveu o ex-primeiro ministro José Sócrates, os Inquéritos que envolveram o BES e mesmo a Operação Lex que envolveu juízes desembargadores. Curiosamente, os dois primeiros ainda não viram decisão judicial final, nem estarão perto disso. Foi notória a firmeza de Joana Marques Vidal na luta contra a corrupção, em particular aquela que atravessa a alta finança e o mundo partidário. Tal como foi notória a vontade de a substituir como PGR no final do seu mandato, quer pelo Governo de António Costa, quer pelo próprio Presidente da República e lá tinham as suas razões que não tinham nada a ver com competência, rigor e determinação da actuação de Joana Marques Vidal enquanto PGR.

Já Lucília Gago, a personalidade escolhida por António Costa e aprovada por Marcelo Rebelo de Sousa para PGR que termina agora o seu mandato, sai no meio de críticas vindas de todo o lado. Essas críticas assumem essencialmente dois aspectos: umas sobre a forma, quando se referem a problemas de comunicação e são as mais frequentes; já outras são sobre assuntos de substância, surgindo à cabeça o célebre comunicado que levou à demissão de António Costa da liderança do seu governo e posterior realização de eleições com tudo o que se seguiu. Não serão menos graves as críticas sobre a actuação, não já da PGR em si, mas do Ministério Público de que é dirigente máxima durante os últimos seis anos. Refiro-me, por exemplo, à realização de escutas a um político (ministro, por sinal) durante quatro anos ou à divulgação sistemática de segredos de justiça ou realização de operações de busca acompanhadas de câmaras de televisão. E as explicações dadas por Lucília Gago na recente entrevista à RTP em nada contribuíram para o esclarecimento público sobre estas questões, antes pelo contrário, apenas agravaram as dúvidas mesmo entre quem tivesse alguma compreensão pelo exercício do cargo pela PGR. Isto é, Lucília Gago sai do cargo e não deixa saudades, mas preocupação sobre a necessidade de introduzir alterações profundas no funcionamento do Ministério Público por parte da personalidade que a vier a substituir em Outubro próximo.

O ambiente em volta da Justiça está envenenado, vendo-se dezenas de cidadãos, boa parte deles políticos de relevância retirados, mas também jornalistas, comentadores e personalidades de diversas áreas sociais e económicas de diferentes opções ideológicas, a assinarem um documento a exigir reforma da Justiça. Em resposta, e parecendo que o dito documento foi assumido como sendo um ataque ao Ministério Público, largas centenas de procuradores do Ministério Público fizeram publicar um manifesto contrariando o seu teor.


Todos tivemos ainda a oportunidade de assistir a uma azeda troca de palavras (ainda que em diferido) entre a PGR e a nova Ministra da Justiça. Diria que pior é impossível. E os cidadãos que vivem fora do mundo da Justiça, mas que acompanham o que acontece com preocupação como o autor destas linhas, não podem deixar de ficar perplexos. Até porque sabemos que o Ministério Público pode propor a realização de escutas, mas estas não poderão acontecer sem a autorização fundamentada de um Juiz da Magistratura Judicial. Tal como sabemos que a regra geral é que os processos não tenham segredo de Justiça e para que o contrário se verifique é igualmente necessária a aprovação de um Juiz. Assim como os atrasos de processos conhecidos e de grande alarme social se verificam porque os arguidos ou acusados usam e abusam de expedientes legais para fazer passar o tempo e, eventualmente, serem ultrapassados os prazos de prescrição. E fazem-no porque podem, porque têm posses e porque a legislação processual penal o autoriza.

Isto é, em vez de ataques entre uns e outros, o que é necessário, é mesmo urgente, é que os dois maiores partidos se entendam e resolvam isto de uma vez por todas, através do que podem e devem fazer: alterar a legislação dos procedimentos penais na Assembleia da República no sentido de maior eficácia e rapidez, no respeito total pelos direitos dos cidadãos. Melhor forma de comemorar os 50 anos do 25 de Abril não haverá, certamente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Julho de 2024 

Imagens recolhidas na internet

 

terça-feira, 9 de julho de 2024

Inteligência artificial e o Mestre SUN

“O General que compreende perfeitamente as vantagens que advêm das variações das táticas sabe como comandar as suas tropas”


Historicamente a guerra, a par do seu extenso rol de horror e tragédias, tem servido para notáveis e rápidos avanços tecnológicos que, nos tempos de paz que se lhes seguem, muito contribuem para facilitar a vida das pessoas comuns. Basta pensar na pólvora e mais recentemente, nos computadores e no GPS. De facto, a necessidade aguça o engenho e as urgências de vitória militar puxam por capacidades adormecidas. Na Segunda Guerra Mundial os Aliados viram-se na necessidade de deslindar a famosa máquina de códigos alemã, daí tendo nascido o Colossus, primeiro computador a que rapidamente se sucederam outros de utilização militar. Não foram necessárias muitas décadas até que praticamente toda a actividade humana se baseia hoje nos computadores como este em que escrevo. O sistema GPS (Sistema de Posicionamento Global) já era utilizado militarmente no início dos anos 80 do século passado, mas foi preciso que os americanos abatessem por engano um avião comercial de passageiros iraniano para que o Presidente Reagan ordenasse a abertura livre e gratuita do sistema ao mundo civil. Aliás, a própria internet pela qual vou enviar esta crónica por mail para publicação se deve à investigação militar, já que a primeira rede foi criada em 1969 pelo Departamento de Defesa dos EUA: a Arpanet.

Atualmente fala-se muito em IA (Inteligência Artificial) sendo abordadas muitas áreas em que o seu desenvolvimento facilitará imenso a actividade humana como, por exemplo, na medicina. Há também quem receie o papel da IA na eliminação de postos de trabalho, replicando aqueles que no início da Revolução Industrial se opuseram à utilização das máquinas, chegando a invadir fábricas destruindo os equipamentos de fiação mecanizados. Estou convicto de que, ao contrário de quem assim pensa, estamos no dealbar de uma nova era em que muito será facilitada a vida e a organização social, em particular na área económica.

Mas se há área em que a IA irá muito rapidamente mudar tudo aquilo que se viu até hoje, é a guerra. Desde o início da guerra na Ucrânia em 2022 que se tem visto a forma como têm evoluído as tácticas militares existindo, ao lado da guerra convencional baseada em artilharia e combates quase corpo a corpo, toda uma utilização de novas tecnologias. Os drones são uma demonstração da evolução extremamente rápida das capacidades dos instrumentos militares. De início eram orientados por GPS mas a capacidade inimiga de empastelar os sinais de orientação, bem como a utilização de ondas de rádio capazes de criar alvos fictícios para proteger os verdadeiros levaram à entrada da IA nos drones. Eles passaram a não depender de sinais exteriores, sendo capazes de se orientar no terreno por eles próprios e de distinguir os alvos falsos dos verdadeiros, através da capacidade de realizar milhões de cálculos por segundo.


Este é um exemplo simples da forma como a IA está já a mudar a forma de fazer a guerra. O ser humano é absolutamente incapaz, num cenário de guerra, de analisar todos os factores que levam a uma decisão correcta face a uma situação em permanente e imprevisível evolução, o que é facilmente executado pela IA. O problema moral coloca-se numa situação limite em que deverá ser colocada uma decisão humana no meio antes da ordem final. O que, na realidade, atribui automaticamente uma vantagem ao inimigo que não tenha essa preocupação moral e pode resultar na derrota.

Como consequência imediata, se os países ricos e poderosos sempre tiveram vantagens em situação de guerra, a IA vai dilatar essa vantagem até ao infinito. Porque, antigamente e nos nossos dias, mesmo os poderosos não podiam vencer sem perdas humanas significativas no terreno, o que não irá acontecer no futuro. A IA permite obter vantagens decisivas, quer na defesa, quer no ataque, a quem dominar a tecnologia e estiver sempre na vanguarda do desenvolvimento da mesma.

Neste momento os países que estão nessa situação são a China e os EUA, estando a Europa completamente fora da corrida. Se até há pouco a China parecia estar ao lado ou mesmo ligeiramente adiantada nesta corrida tecnológica do desenvolvimento da IA, neste momento os EUA parece tomarem já larga vantagem. Sinal disso mesmo é a valorização gigantesca da Nvídia, maior produtor mundial de chips capazes de IA.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Julho de 2024

Imagens retiradas da internet