Maior ironia do destino não seria possível. Num momento em que tanto se discute o estado da Justiça em Portugal, em particular a actuação do Ministério Público e da sua dirigente máxima, morreu Joana Marques Vidal, a Procuradora-Geral da República que foi substituída no cargo em 2018 pela actual PGR, Lucília Gago.
Agora que tanta gente louva Joana Marques Vidal, vale a pena recordar o contexto da sua substituição como PGR. Foi sob a sua direcção que avançaram processos com grande impacto na nossa vida colectiva, mesmo para além da política. Recordo a Operação Marquês que envolveu o ex-primeiro ministro José Sócrates, os Inquéritos que envolveram o BES e mesmo a Operação Lex que envolveu juízes desembargadores. Curiosamente, os dois primeiros ainda não viram decisão judicial final, nem estarão perto disso. Foi notória a firmeza de Joana Marques Vidal na luta contra a corrupção, em particular aquela que atravessa a alta finança e o mundo partidário. Tal como foi notória a vontade de a substituir como PGR no final do seu mandato, quer pelo Governo de António Costa, quer pelo próprio Presidente da República e lá tinham as suas razões que não tinham nada a ver com competência, rigor e determinação da actuação de Joana Marques Vidal enquanto PGR.
Já Lucília Gago, a personalidade escolhida por António Costa e aprovada por Marcelo Rebelo de Sousa para PGR que termina agora o seu mandato, sai no meio de críticas vindas de todo o lado. Essas críticas assumem essencialmente dois aspectos: umas sobre a forma, quando se referem a problemas de comunicação e são as mais frequentes; já outras são sobre assuntos de substância, surgindo à cabeça o célebre comunicado que levou à demissão de António Costa da liderança do seu governo e posterior realização de eleições com tudo o que se seguiu. Não serão menos graves as críticas sobre a actuação, não já da PGR em si, mas do Ministério Público de que é dirigente máxima durante os últimos seis anos. Refiro-me, por exemplo, à realização de escutas a um político (ministro, por sinal) durante quatro anos ou à divulgação sistemática de segredos de justiça ou realização de operações de busca acompanhadas de câmaras de televisão. E as explicações dadas por Lucília Gago na recente entrevista à RTP em nada contribuíram para o esclarecimento público sobre estas questões, antes pelo contrário, apenas agravaram as dúvidas mesmo entre quem tivesse alguma compreensão pelo exercício do cargo pela PGR. Isto é, Lucília Gago sai do cargo e não deixa saudades, mas preocupação sobre a necessidade de introduzir alterações profundas no funcionamento do Ministério Público por parte da personalidade que a vier a substituir em Outubro próximo.
O ambiente em volta da Justiça está envenenado, vendo-se dezenas de cidadãos, boa parte deles políticos de relevância retirados, mas também jornalistas, comentadores e personalidades de diversas áreas sociais e económicas de diferentes opções ideológicas, a assinarem um documento a exigir reforma da Justiça. Em resposta, e parecendo que o dito documento foi assumido como sendo um ataque ao Ministério Público, largas centenas de procuradores do Ministério Público fizeram publicar um manifesto contrariando o seu teor.
Todos tivemos ainda a oportunidade de assistir a uma azeda troca de palavras (ainda que em diferido) entre a PGR e a nova Ministra da Justiça. Diria que pior é impossível. E os cidadãos que vivem fora do mundo da Justiça, mas que acompanham o que acontece com preocupação como o autor destas linhas, não podem deixar de ficar perplexos. Até porque sabemos que o Ministério Público pode propor a realização de escutas, mas estas não poderão acontecer sem a autorização fundamentada de um Juiz da Magistratura Judicial. Tal como sabemos que a regra geral é que os processos não tenham segredo de Justiça e para que o contrário se verifique é igualmente necessária a aprovação de um Juiz. Assim como os atrasos de processos conhecidos e de grande alarme social se verificam porque os arguidos ou acusados usam e abusam de expedientes legais para fazer passar o tempo e, eventualmente, serem ultrapassados os prazos de prescrição. E fazem-no porque podem, porque têm posses e porque a legislação processual penal o autoriza.
Isto é, em vez de ataques entre uns e outros, o que é necessário, é mesmo urgente, é que os dois maiores partidos se entendam e resolvam isto de uma vez por todas, através do que podem e devem fazer: alterar a legislação dos procedimentos penais na Assembleia da República no sentido de maior eficácia e rapidez, no respeito total pelos direitos dos cidadãos. Melhor forma de comemorar os 50 anos do 25 de Abril não haverá, certamente.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Julho de 2024
Imagens recolhidas na internet
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