A pandemia COVID
19 veio abalar a normalidade das vidas em todo o mundo e também entre nós e na
Europa o que nos interessa sobremaneira. Em Portugal as alterações a nível
económico e político ainda não são claramente visíveis, mas vão ser profundas.
Até porque não será mais possível manter um sistema disfuncional e, porque não
dizê-lo frontalmente, corrupto, que não nos deixa crescer até finalmente nos
podermos considerar na média europeia, já que acima disso parece ser mesmo uma
impossibilidade.
A União Europeia,
finalmente, foi ao mercado financiar-se para entregar dinheiro aos estados
membros em aflição por causa do coronavirus. Muita gente bateu palmas a esta
atitude em que, pela primeira vez, a U.E. distribui dinheiro não proveniente
dos orçamentos dos estados membros, não percebendo que se está a dar um passo
gigantesco rumo ao federalismo que, se calhar, não querem. E que, neste
momento, a União não tem um governo democrático eleito pelos cidadãos europeus,
pelo que a regra universal das democracias de «no taxation without
representation» não está a ser seguida na União, o que vai ter consequências.
Pelo menos as
últimas duas dezenas de anos têm sido um desastre para Portugal. A vinda da
troica em 2011 não caiu do céu aos trambolhões: foi consequência de opções políticas
erradas, mas fundamentalmente da captura do Estado por inúmeras corporações. O
que se passou com o BES, com a PT e o que se vai agora descobrindo, também com
a EDP, significou uma capacidade de criar rendas para alguns à custa dos
portugueses. A perda de valor com o BES e com a PT está a ser paga pela falta
de crescimento da economia portuguesa, sistematicamente descapitalizada, apesar
dos milhares de milhões vindos da União Europeia desviados pelo Estado do
crescimento económico para financiar o seu funcionamento corrente, para o qual
não chega uma carga fiscal gigantesca. As rendas das PPP rodoviárias que se
mantêm, os CMEC (custos de manutenção de equilíbrio contratual) da
electricidade, as garantias de preços das eólicas são alguns dos pesos que os
portugueses e o resto da economia têm de suportar e que não os deixam levantar
a cabeça. O que se passa agora com a venda de activos do Novo Banco é apenas o
«resto» dos custos do BES, que o Estado resolveu assumir contratualmente de
forma ínvia, para se livrar do problema. Tudo o resto que se discute é areia
atirada para os olhos dos portugueses pela classe política, do governo à
oposição.
Apesar de os
líderes políticos, desde o presidente da República ao primeiro-Ministro
passando pelos líderes da oposição, tudo fazerem para transmitir segurança
provavelmente assustados com o que vão sabendo, na verdade a realidade, apenas
colocada a nu mais cedo pela pandemia, vai-se impor a curto prazo de uma forma
avassaladora e pouco restará do que tem sido a nossa «normalidade». Um sintoma
disso mesmo foram as duas entrevistas a dois políticos socialistas fora do
actual sistema, Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto que vieram neste momento
agitar as águas políticas, mostrando que, muito provavelmente, o futuro do PS
não passará nem por Pedro Nuno Santos nem por Fernando Medina, lídimos
representantes do PS que nos trouxe até aqui. A mão dada por Rui Rio a Costa
com a mudança dos debates parlamentares com o PM de quinzenais para de dois em
dois meses é igualmente sinal de fragilidade perante as mudanças profundas que
se anunciam. Que o desconforto comece dentro do partido do poder é perfeitamente
normal, porque é o que, de momento, mais tem a perder.
A evidência de que
não temos capacidade financeira para enfrentar as consequências da pandemia no
produto, no desemprego e no desaparecimento de empresas surgiu patente na
necessidade absoluta de mais transferências urgentes da União Europeia. O plano/catálogo
apresentado por um consultor do Governo é uma lista de «desejos» a maior parte
deles irrealizável, já que se os dinheiros europeus chegarem para recuperar da
pandemia rapidamente já não será mau. Apresentar como salvação nacional uma
relação de todos os projectos de investimento público que têm sido falados ao
longo de dezenas de anos, a que se juntam alguns novos, de novo rentistas, como
o hidrogénio verde, é pensar que a «normalidade» vai continuar e fechar os
olhos perante a realidade. Ainda não perceberam, ou tentam desesperadamente
evitá-lo, que o sistema de que têm vivido à custa do crescimento vai ser inevitavelmente
desmantelado.
O passado e o presente deveriam fazer parar os responsáveis para tentar
perceber o que nos trará o futuro. Tal não está a acontecer, estando os actuais
políticos apenas a pensar no seu próprio futuro imediato, ainda que, de vez em
quando, vão reconhecendo que esta é a maior crise desde o «crash da bolsa» de
1929, ou mesmo pior. Vão ser destroçados por uma realidade que se imporá sem
contemplações e que não deixará pedra sobre pedra do actual sistema.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Agosto de 2020