A marcha do tempo que às vezes nos parece tão vagarosa mas que ao olhar para trás mais parece uma corrida louca num túnel prega-nos, por vezes, partidas onde menos as esperávamos. O regresso a locais da infância e da juventude, ao fazer reviver aquelas gratas recordações que guardamos na memória e, fundamentalmente, no afecto a que os antigos chamavam coração, pode constituir um choque no dia-a-dia que vamos vivendo.
E é assim que no regresso a determinados locais um turbilhão de sensações nos atinge como uma tempestade que não previmos e de que não podemos fugir. Dos campos de ténis incrivelmente existentes numa aldeia florestal da Beira Baixa, onde há cinco décadas se aprendeu a jogar com jovens estudantes ingleses em férias estivais, restam uns vestígios com umas redes desfeitas, sem qualquer préstimo para os jovens de hoje. Tal como o fontenário onde se levavam cântaros ao fim do dia para encher o depósito em casa por não haver água canalizada, onde se juntava gente com o mesmo fim e se aproveitava o tempo para conversar e, porque não dizê-lo? para um ou outro namorico. O tanque com a torneira continua lá, mas quem passa não imagina quão importante foi em tempos e de como servia também como agregador de relações. O caminho entre pedras e água da ribeira que levava ao Rio Zêzere onde grupos de jovens passavam tardes quentes de Verão desapareceu debaixo de um matagal impenetrável que mostra a facilidade com que os incêndios surgem e se desenvolvem em montes e vales onde não se vê vivalma. Eram tempos de convívio fácil e conversa imediata, com utilização despreocupada de locais paradisíacos da natureza, curiosamente sem quaisquer explorações comerciais, cancro que mina hoje todas as actividades, mesmo as de lazer simples.
Hoje em dia quase parece impossível que esses tempos foram uma realidade e o simples facto de o recordar é provável que suscite no leitor desta crónica um sentimento de que o autor foi possuído por um espírito saudosista ou mesmo nostálgico. Nada de mais errado. O texto é apenas resultado de uma consciencialização de que um tempo que já passou sobrevive hoje apenas na nossa memória e de que filhos e netos poderão visitar os mesmos locais que as suas experiências serão tão diferentes que dificilmente entenderão uma descrição do passado. As memórias pessoais suscitadas por elementos materiais concretos transformaram-se com o tempo noutras que se assemelham às memórias de cheiros ou de músicas ouvidas há muito, que foram e são apenas sensações vividas no nosso cérebro que, adormecidas, acordam de súbito para emergir na consciência em determinadas circunstâncias, como passagem em certos locais.
Mesmo na actualidade, o contraste de vivências que, de uma forma ou de outra, foram as nossas até há poucos meses, com o tempo presente marcado pela pandemia é marcante. O contacto inter-pessoal praticamente desapareceu, com os abraços e apertos de mão a serem substituídos por cotoveladas patéticas. O surgimento de novos relacionamentos está prejudicado pelo encerramento de locais de convívio e os simples cafés parece terem perdido o seu papel de facilitador de conversas despreocupadas. As pessoas adquiriram medo umas das outras, sendo possível ver alguém perto de umas escadas rolantes num centro comercial afastar-se com receio assim que alguém se aproxima, ainda que ambos usem máscara e estejam a vários metros de distância. Um sentimento difuso de culpa colectiva acompanha o medo generalizado, fazendo lembrar os tempos inquisitoriais em que era impossível estar certo de não se ter cometido alguma falta.
Poderá haver, e haverá certamente, comportamentos sociais trazidos pela pandemia que serão, mais cedo ou mais tarde, abandonados ou corrigidos com a evolução do combate à doença que lhe deu origem. Mas não voltaremos aos tempos de antes, que agora percebemos serem de felicidade simples. E as novas gerações, atordoadas com uma evidente dificuldade em estabelecer padrões escolares saudáveis dificilmente terão capacidade para fugir a uma «normalidade» doentia que tanto lhes coloca os pais permanentemente em casa a trabalhar no computador, como os retira das salas de aula e os separa de colegas e amigos.
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