Em 1993 a Força de Protecção da ONU Unprofor foi enviada para a Bósnia para proteger as populações civis da guerra que aí decorria. Mas em Julho de 1995 os capacetes azuis, na altura holandeses, entregaram cerca de 300 bósnios muçulmanos (homens e crianças) que se encontravam no complexo da ONU em Srebrenica, às forças servo-bósnias comandadas pelo Gen. Ratko Mladic que trataram de os massacrar. Em 2014 os tribunais holandeses consideraram que os soldados holandeses agiram ilegalmente e o Estado Holandês como parcialmente responsável, decretando indemnizações às famílias das vítimas. O que naqueles dias pavorosos aconteceu naquela zona da Europa e que hoje está integrada na União Europeia, foi mesmo qualificado como genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia, tendo a matança de homens e crianças ascendido a uns oito mil.
Em 2008 a organização não-governamental Save the Children denunciou que membros de forças de manutenção da paz da ONU na Costa do Marfim e no Sudão abusavam sexualmente de crianças. Já em 2016, soube-se que capacetes azuis da ONU pagavam por sexo com crianças de 13 anos na República Centro-Africana, mesmo depois de o responsável da ONU naquele país ter sido despedido. Os próprios responsáveis máximos da ONU reconhecem que no campo de refugiados M´Poko «acontecem coisas horríveis e inaceitáveis contra mulheres e crianças» e organizações como a Amnistia Internacional referem que «os soldados se sentem acima da lei, assumindo que nunca serão julgados pelos seus actos».
E agora aconteceu com capacetes azuis portugueses. Claro que, na tradição dos «Oliveiras da Figueira» por esse mundo fora, alguns soldados comandos capacetes azuis portugueses dedicaram-se, não a fechar os olhos a matanças ou a praticar violações sistemáticas, mas à negociata, pura e dura. No final de 2019 as chefias militares tiveram conhecimento da existência de uma rede de tráfico de diamantes, ouro e droga baseada no contingente militar português em representação da ONU na República Centro-Africana, utilizando os aviões militares portugueses para retirar os materiais traficados e transportá-los em segurança para Portugal e depois para a Europa, designadamente Antuérpia. A denúncia partiu, não de alguém que tivesse sabido do que estava a acontecer por acaso, mas de um dos participantes no esquema, um tradutor local a quem não foi pago o combinado com a rede e que resolveu, por vingança, contar tudo às chefias militares portuguesas.
A investigação, por parte da Polícia Judiciária na operação a que chamou Miríade, chegou agora ao fim com a realização de buscas de Norte a Sul do país incluindo o Regimento de Comandos e a prisão preventiva de dois arguidos suspeitos de chefiarem a organização criminosa, para além da constituição de vários outros suspeitos como arguidos.
A extensão da rede com várias ligações internacionais e a capacidade de colocar diamantes e ouro no mercado, o que não é fácil e exige técnicas financeiras para lavagem de dinheiro em quantidades apreciáveis terá surpreendido as próprias autoridades que ainda estarão longe de ter detectado todas as ramificações.
Surpreendidos ficaram também os portugueses, quer pela descoberta da rede em si, quer com o desconhecimento completo do que se passava por parte do primeiro-Ministro e do próprio Presidente da República que é, constitucionalmente, o Comandante Supremo das Forças Armadas. O ministro da Defesa, argumentando com o «segredo de justiça», terá mantido à margem os órgãos de soberania com responsabilidades na área militar. Por outro lado, não deixou de informar a ONU do que se passava, mas colocando também de lado o seu colega ministro dos Negócios Estrangeiros. Tudo isto é mau demais e não dignifica Governo e Forças Armadas. É evidente que informar os outros Órgãos de Soberania e a própria chefia do Governo da existência de investigação não coloca minimamente em causa o segredo de Justiça, já que o próprio ministro da Defesa estava naturalmente fora da investigação criminal.
Virem agora os próprios responsáveis políticos máximos defender que o prestígio das Forças Armadas e do país não foram beliscados é tentar tapar o Sol com a peneira. Claro que o foram e o que há a fazer agora é, para além de se fazer Justiça, mostrar à evidência que os procedimentos de segurança e de prevenção de corrupção foram já, ou vão-no ser de imediato, alterados de forma a impedir que algo de semelhante possa voltar a acontecer. E, claro, a assunção das responsabilidades políticas pela forma como todo este caso foi tratado.
Os comentários de Putin sobre este caso, ainda que vindos de alguém que representa regimes políticos que alteram constituições para eternizarem líderes no poder, aí estão para demonstrar como o caso é sério a nível internacional e não se deve esperar apenas que seja esquecido, como uma qualquer circunstância sem significado.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Novembro de 2021
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