“O Ministério Público solicitou esta quarta-feira uma pena de prisão suspensa de um ano para o ministro da Justiça, num julgamento sobre alegado abuso de poder, numa situação inédita”.
Não, o estimado leitor não leu mal. Assim começava uma notícia do Expresso na semana passada. Só que da notícia cortei alguns elementos. Na realidade, o Ministério Público em causa é o francês e o ministro da Justiça é do governo de França, chamando-se Éric Dupont-Moretti. Segundo o procurador do caso, o ministro “terá abusado da sua posição para instaurar processos administrativos contra quatro juízes com os quais teve conflitos quando era advogado” antes, portanto, de ser ministro. Sobre quem tem razão não faço a mínima ideia e nem estou preocupado com isso, tratando-se de uma questão puramente interna de França.
Mas a situação descrita não anda muito longe do que se passa em Portugal, embora com as diferenças evidentes. Desde logo, em França, há uma regra governativa não escrita, segundo a qual um membro do executivo deve demitir-se em caso de acusação e não de existência de apenas inquérito. É essa a situação do processo, embora o ministro não se tenha demitido, já que afirma que os ditos processos contra os juízes não partiram de si, mas que tiveram origem na administração.
As relações difíceis entre os mundos da política e da justiça andam assim na ordem do dia, e não apenas em Portugal. Também no país que é talvez o paradigma da República, o país da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, se assiste a uma luta, quase sempre de bastidores mas que, de vez em quando salta para a luz do dia com grande intensidade. Tal como cá.
A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade é muitas vezes ténue e de difícil definição exacta, seja porque as leis devem ser assim mesmo, gerais e abstractas, mas demasiadas vezes essa fronteira não é claramente definida por vontade do legislador. Os deveres de um Governo, nos dias de hoje, e na situação de membro de uma união política, incluem obrigatoriamente conseguir investimentos estrangeiros no país, lembrando-se aqui o caso exemplar da Auto-Europa que, só por si, significa uma parcela importante do nosso PIB, quer directamente, quer por indução através de fornecedores nacionais da empresa, quase toda ela exportadora. A negociação desse tipo de investimentos exige frequentemente confidencialidade, dada a sua própria natureza. Mas, mesmo nestes casos, há sempre um choque entre o carácter privado do investidor e o carácter público do Governo devendo, sobretudo este último, estar condicionado pelas regras pré-existentes que se aplicam a todos os eventualmente interessados não colocando em causa o equilíbrio de mercado ao atribuir vantagens a este ou aquele. Isto, ainda que o interessado esteja mais próximo de objectivos estratégicos definidos pelo Governo, logo de carácter político.
Mas quem define essa fronteira é a política, que é quem faz as leis. A justiça aplica essas leis, não as faz. Se o Ministério Público toma conhecimento de acções que de alguma forma podem ultrapassar aquela linha é sua obrigação entrar em campo e investigar, doa a quem doer.
Claro em quem alturas de crise aparece sempre quem defenda uma subordinação da justiça à política, como se isso fosse desejável ou mesmo admissível em democracia. Aliás é a própria Constituição da República que estabelece que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar …. e defender a legalidade democrática” estipulando-se ainda que o MP goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei. Bem sabemos que as leis podem ter leituras que dependem muitas vezes de quem as interpreta, por isso mesmo em todos os processos tem de existir uma acusação, uma defesa e um juiz independente para decidir de que é ainda possível recorrer para instâncias superiores, havendo mesmo a hipótese de pedir a constitucionalidade das leis aplicadas. É o que se espera neste caso que traz todos os portugueses inquietos e mesmo chocados com a demissão de um Governo na sequência do conhecimento de um processo-crime envolvendo o Primeiro-Ministro. Aguardemos, pois, pelo normal funcionamento da Justiça, num caso em que milhões de olhares estarão atentos ao desenrolar do processo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Novembro de 2023
Imagem recolhida na internet