terça-feira, 21 de novembro de 2023

Justiça e política

 


“O Ministério Público solicitou esta quarta-feira uma pena de prisão suspensa de um ano para o ministro da Justiça, num julgamento sobre alegado abuso de poder, numa situação inédita”.

Não, o estimado leitor não leu mal. Assim começava uma notícia do Expresso na semana passada. Só que da notícia cortei alguns elementos. Na realidade, o Ministério Público em causa é o francês e o ministro da Justiça é do governo de França, chamando-se Éric Dupont-Moretti. Segundo o procurador do caso, o ministro “terá abusado da sua posição para instaurar processos administrativos contra quatro juízes com os quais teve conflitos quando era advogado” antes, portanto, de ser ministro. Sobre quem tem razão não faço a mínima ideia e nem estou preocupado com isso, tratando-se de uma questão puramente interna de França.

Mas a situação descrita não anda muito longe do que se passa em Portugal, embora com as diferenças evidentes. Desde logo, em França, há uma regra governativa não escrita, segundo a qual um membro do executivo deve demitir-se em caso de acusação e não de existência de apenas inquérito. É essa a situação do processo, embora o ministro não se tenha demitido, já que afirma que os ditos processos contra os juízes não partiram de si, mas que tiveram origem na administração.

As relações difíceis entre os mundos da política e da justiça andam assim na ordem do dia, e não apenas em Portugal. Também no país que é talvez o paradigma da República, o país da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, se assiste a uma luta, quase sempre de bastidores mas que, de vez em quando salta para a luz do dia com grande intensidade. Tal como cá.

A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade é muitas vezes ténue e de difícil definição exacta, seja porque as leis devem ser assim mesmo, gerais e abstractas, mas demasiadas vezes essa fronteira não é claramente definida por vontade do legislador. Os deveres de um Governo, nos dias de hoje, e na situação de membro de uma união política, incluem obrigatoriamente conseguir investimentos estrangeiros no país, lembrando-se aqui o caso exemplar da Auto-Europa que, só por si, significa uma parcela importante do nosso PIB, quer directamente, quer por indução através de fornecedores nacionais da empresa, quase toda ela exportadora. A negociação desse tipo de investimentos exige frequentemente confidencialidade, dada a sua própria natureza. Mas, mesmo nestes casos, há sempre um choque entre o carácter privado do investidor e o carácter público do Governo devendo, sobretudo este último, estar condicionado pelas regras pré-existentes que se aplicam a todos os eventualmente interessados não colocando em causa o equilíbrio de mercado ao atribuir vantagens a este ou aquele. Isto, ainda que o interessado esteja mais próximo de objectivos estratégicos definidos pelo Governo, logo de carácter político.

Mas quem define essa fronteira é a política, que é quem faz as leis. A justiça aplica essas leis, não as faz. Se o Ministério Público toma conhecimento de acções que de alguma forma podem ultrapassar aquela linha é sua obrigação entrar em campo e investigar, doa a quem doer.

Claro em quem alturas de crise aparece sempre quem defenda uma subordinação da justiça à política, como se isso fosse desejável ou mesmo admissível em democracia. Aliás é a própria Constituição da República que estabelece que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar …. e defender a legalidade democrática” estipulando-se ainda que o MP goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei. Bem sabemos que as leis podem ter leituras que dependem muitas vezes de quem as interpreta, por isso mesmo em todos os processos tem de existir uma acusação, uma defesa e um juiz independente para decidir de que é ainda possível recorrer para instâncias superiores, havendo mesmo a hipótese de pedir a constitucionalidade das leis aplicadas. É o que se espera neste caso que traz todos os portugueses inquietos e mesmo chocados com a demissão de um Governo na sequência do conhecimento de um processo-crime envolvendo o Primeiro-Ministro. Aguardemos, pois, pelo normal funcionamento da Justiça, num caso em que milhões de olhares estarão atentos ao desenrolar do processo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Novembro de 2023

Imagem recolhida na internet

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Portugal sem Governo

 


Sai um pacato cronista do país por alguns dias e, ao regressar, encontra um país outro com um Governo demissionário quando não tem ainda dois anos de funcionamento e, ainda por cima, com maioria absoluta. Tudo o que se havia pensado para a crónica semanal cai face a uma actualidade que se impõe de forma avassaladora e inescapável.

Diz-se que Júlio César se referiu aos nossos antepassados Lusitanos como sendo “aquele povo que nem se governa, nem se deixa governar” e parece tudo fazermos para que esse comentário se nos aplique ainda nos dias de hoje.

A recente evolução da situação política suscita dois comentários essenciais.

Em primeiro lugar é impossível deixar de verificar a difícil relação dos dois últimos primeiros-ministros socialistas com a Justiça. José Sócrates só foi preso e começou a sua saga do processo Marquês três anos depois de sair de primeiro-ministro mas, na realidade, os seus problemas com a Justiça haviam começado muito antes, embora enquanto governante se tenha safado sempre, de forma mais ou menos velada. Como é evidente, ninguém pensa que as suas acções que levaram aos seus problemas judiciais tenham passado completamente despercebidas junto dos seus camaradas de partido e de governo, até porque se misturaram tragicamente com a economia e a finança, desembocando na pré-bancarrota do país.

De forma “hábil” como a sua acção costuma ser apelidada, o que não me parece um grande elogio a um governante mas adiante, António Costa conseguiu isolar Sócrates escondendo-se atrás da frase “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”. Assim procedendo, o PS nunca reconheceu o lado político grave do caso Sócrates, embora este não tenha surgido do nada, tendo percorrido a carreira partidária do costume, desde a distrital até ao governo, passando pelo Parlamento. Sócrates conseguiu mesmo a primeira maioria absoluta do PS, com muitos votos de alguma direita que apreciou o seu estilo voluntarista e até algo autoritário.


Significando o sucesso desta atitude, António Costa conseguiu governar durante oito anos, ainda que tenha levado para os seus governos boa parte dos que tinham estado nos governos de Sócrates, quer governantes, quer colaboradores directos. Em consequência, os êxitos políticos foram tapando muito do que se passava nos subterrâneos da acção governativa, tendo agora surgido à superfície de forma escandalosa, pela mão da Justiça. Como geralmente sucede. E António Costa, depois do êxitos políticos pessoais lá teve que se demitir e sair pela porta pequena, ao contrário do que muito justamente poderia ter sonhado.

E o país, como fica com tudo o que está a acontecer? Em primeiro lugar passa por uma imagem internacional desgraçada que só nos pode envergonhar colectivamente. Como pude verificar directamente, os noticiários estrangeiros deram a notícia como “primeiro-ministro de Portugal demite-se envolvido em caso de corrupção”. Assim mesmo. Relativamente aos ministros envolvidos e ainda ao chefe do gabinete do PM que escondia dezenas de milhares de euros no seu gabinete no Palacete de São Bento que é a residência oficial do Primeiro-Ministro de Portugal (vergonha maior será difícil), o Ministério Público eventualmente deverá ter elementos suficientes para deduzir as suas acusações de prevaricação, tráfico de influências ou mesmo de corrupção.

Já relativamente ao processo que envolve António Costa e que decorre no Supremo Tribunal de Justiça, a sensação generalizada é que poderá, ou não, evoluir para acusação. De qualquer forma, chegou-se a uma situação que se costuma designar como “lose-lose”, em que cada uma das saídas é tão má como a outra. Em caso de arquivamento, o país teve uma crise que levou a eleições antecipadas com todos custos que isso implica, a nível político, económico e social deixando o Ministério Público em maus lençóis por ter envolvido o Primeiro-Ministro sem bases reais para o fazer. Caso haja acusação, é todo o país que sofre por ver mais um ex-Primeiro Ministro nos tribunais por questões ligadas a corrupção, mais parecendo uma sina nacional.

O que nos poderá levar a pensar se tal não estará ligado à surpreendente descoberta recente de que existe um carimbo genético exclusivamente português que nos dá características únicas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Novembro de 2023

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A era do desperdício

 


Pertenço à geração nascida nos anos 50 do sec. XX. Até há alguns anos não tive verdadeira consciência de como o fim da Segunda Grande Guerra acontecera menos de dez anos antes de ter nascido, certamente porque em Portugal não sofremos a desgraça da destruição de cidades que quase toda a Europa conheceu.

Mas testemunhei um mundo que já acabou, embora ainda muitos de nós não o reconheçamos e muito menos o aceitemos como realidade. Ao contrário dos mais jovens que já perceberam várias coisas, entre as quais que provavelmente irão viver com mais dificuldades económicas que os pais, que não terão provavelmente as mesmas possibilidades de trabalho e que a remuneração será mais baixa, que viverão num mundo mais inseguro mas mais aberto e que, fundamentalmente, o seu será um mundo mais tecnológico e desumanizado, menos próspero, menos limpo e mais áspero.

De facto, as 2 ou 3 décadas que se seguiram à IIGG foram, no mundo ocidental, de uma prosperidade nunca antes vista. Foi o tempo em que era possível sonhar tudo, até levar o Homem à Lua. O que aconteceu, em 1969!

Mas, como acontece a tudo o que é bom, essa era teve um fim. Como que numa bebedeira colectiva, estamos hoje a viver a ressaca desse tempo. A economia tinha uma caraterística linear: produzir, usar e deitar fora. O paradigma dessa economia será, para nós, uma célebre marca espanhola: comprar roupa barata, para usar umas (poucas) vezes, para logo substituir por outra em tudo semelhante descartando a “antiga”, assim continuando indefinidamente. O velho tempo em que se comprava roupa para durar anos a fio, feita de bons materiais, mas que não podia acompanhar a moda sempre a mudar, parecia ter terminado. O que não terminava de crescer era o lixo produzido por esse tipo de economia, já que tudo o mais seguia a regra da roupa, desde os automóveis à mobília e aos telemóveis. Há mesmo quem garanta que os electrodomésticos eram construídos com uma pequena peça mais frágil que viria a ditar o fim da vida útil dos aparelhos, assim se assegurando um mercado infindo.


E o lixo acumulou-se por todo o mundo, de várias maneiras, desde os continentes aos rios e mares, incluindo a atmosfera. Entretanto estamos a tomar consciência de que esse mundo acabou, tal como a forma como utilizamos tudo o que o planeta em que vivemos nos proporciona tem obrigatoriamente de acabar. Cerca de um terço do que consumimos acaba, mais cedo do que tarde, no lixo. Muito disso seria facilmente recuperável e reutilizável, seja por nós próprios, como por quem dificilmente tem acesso a esses produtos. Por outro lado, muito do que acumulamos nas nossas casas ao longo dos anos, é, se pensarmos bem nisso, perfeitamente dispensável e apenas um peso para os descendentes que de tudo isso dificilmente poderão tirar algum valor.

É também sabido que, de toda a comida que produzimos nas nossas casas, um terço vai igualmente para o lixo, num desperdício gigantesco e socialmente intolerável em absoluto.

Não é mais possível continuar neste caminho. Por isso, lentamente, o conceito de sustentabilidade vai tomando um lugar cada vez mais importante, na economia em geral, mas também no nosso quotidiano.

O velho conceito linear de produzir, consumir e deitar fora está a ser substituído pelo circular que consiste em produzir, utilizar e reciclar para reutilizar, evitando o desperdício e a produção descontrolada de lixo.

Não se pense que se trata de um conceito vago ou abstracto que não nos diz respeito a todos nós em particular. Trata-se sim de tornar o nosso mundo sustentável, isto é, que seja possível entregá-lo sucessivamente às gerações seguintes melhor ou pelo menos igual ao que é recebido. Isto em relação às questões macro que respeitam aos países e grandes empresas globais, mas também a cada um de nós na nossa vida profissional e pessoal. Começando pelos nossos hábitos de consumo e acabando na cozinha e no destino aos excedentes vários que todos os dias produzimos. E atenção: o mundo está mesmo a mudar; mais do que nós vemos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 Out 2023
Imagens recolhidas na internet