segunda-feira, 1 de novembro de 2010

DO MAR QUE FOI PORTUGUÊS


Sucede por vezes na nossa vida sermos obrigados a fazer coisas que não desejamos, que não queremos, mas a que não podemos ou não devemos fugir. E às vezes, depois de as fazermos, fica-nos um sabor a sal na boca e uma saudade para sempre. Há muitos anos fui chamado a cumprir o Serviço Militar Obrigatório, num ramo das Forças Armadas que me era totalmente desconhecido: a Marinha de Guerra. Aí aprendi muito, fiquei a admirar com conhecimento de causa todos os que ganham a sua vida no mar e a conhecer melhor o potencial fabuloso para Portugal, que é o facto de ter Zona Económica Exclusiva absolutamente gigantesca por os Açores e a Madeira serem portugueses. Na Europa, apenas o Reino Unido, a França e a Dinamarca têm áreas superiores.

Infelizmente, nas últimas dezenas de anos assistimos a um definhar das actividades ligadas ao mar. Estamos muito longe da época de quinhentos em que o Mar era português. Isto, pese o facto de alguns dos nossos melhores andarem há anos a alertar para o desperdício que é virarmos as costas ao mar, com o Doutor Ernâni Lopes à cabeça e a sua defesa do “Hipercluster do mar”.

Nas pescas, deixámo-nos embalar pela conversa dos eurocratas e a nossa frota é hoje diminuta: em resultado, 2/3 do peixe que hoje consumimos é importado. Deve ser recordada a epopeia hoje quase esquecida dos homens dos “doris” dos bacalhoeiros na Terra Nova. A indústria conserveira portuguesa que sempre foi considerada de altíssima qualidade consistia há cinquenta anos em cerca de 400 fábricas; hoje existem 20!

O desporto náutico quase não existe entre nós, não havendo estruturas que favoreçam o interesse da juventude por essa actividade, apesar de Portugal ter 1187 Km de costa marítima.

A nossa frota mercante praticamente desapareceu. A indústria de construção naval já quase não existe, restando felizmente alguma capacidade de reparação naval, muito abaixo do que era há quarenta anos. Os portos estão quase como eram há vinte anos; as suas ligações ferroviárias à Europa são inexistentes. Só temos auto-estradas e milhares de camiões a transportar mercadorias: pura estupidez e desperdício!

Com a consciência crescente do enorme buraco de competitividade económica do país, começam finalmente a surgir sinais de que começamos a acordar para as possibilidades económicas que o mar tem à nossa espera. Assim os responsáveis pela economia e pelo planeamento estratégico do país o entendam e metam mãos à obra, para além das palavras.

No dia em que faz cinco anos que estas crónicas semanais existem, não posso deixar de colocar aqui uma nota de agradecimento ao Diário de Coimbra por tão amavelmente me acolher nas suas páginas. Este jornal com oitenta anos de idade, que se intitula orgulhosamente regionalista e republicano é assim dos mais antigos do País. Este jornal é o resultado de uma luta diária de todos os que nele trabalham, desde os proprietários aos redactores, aos jornalistas e aos fotógrafos que na rua recolhem o quotidiano e no-lo dão a conhecer nas suas páginas. Seria já muito difícil imaginar a nossa Cidade sem o seu Diário de Coimbra. Nesta oportunidade, aproveito ainda para enviar a todos aqueles que também escrevem nas suas páginas um abraço que significa respeito por todos os que têm a coragem de assumir publicamente o que defendem, concorde-se ou discorde-se deles. Aos meus leitores um abraço reconhecido, pois sem as suas manifestações sempre amigas de apoio crítico, há muito que teria deixado esta “obrigação” semanal.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 1 de Novembro de 2010

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

OS DONOS


É comum considerar que o desenvolvimento das sociedades é sempre acompanhado por uma evolução das mentalidades. Mas muitas vezes isso não é verdade. Particularmente quando se confunde desenvolvimento com simples crescimento económico. De facto, quando se investe essencialmente em infra-estruturas (a partir de certa altura equipamentos acessórios ou mesmo redundantes) e não no conhecimento e na Educação, favorece-se a ocorrência de desfasamento entre uma aparente qualidade de vida e as atitudes das pessoas. É aquilo a que hoje se chama diferença entre “software” e “hardware” que, em termos sociais, faz ressaltar velhos e anquilosados preconceitos dos que se consideram a si próprios “donos” de alguma coisa e tentam impor aos outros as suas próprias vontades.

Lembro-me dos donos da Constituição. Depois de várias revisões feitas desde 1976 que foram todas no sentido contrário ao da vontade dos que na altura chegaram a sequestrar a Assembleia Constituinte para evitar que ela saísse, os mesmos aparecem ainda hoje como os seus donos. Se alguém se atreve a colocar em causa algum princípio em função da evolução política, social e económica do país e do mundo, aqui d’el-rei, que é neo-liberal!

Temos ultimamente os donos do “Estado social”. Perante quem pretende corrigir injustiças óbvias que funcionam sempre contra os mais desfavorecidos, acudam, que querem destruir o Estado Social.

Existem igualmente os donos do politicamente correcto. Não se pode dizer bicha em vez de fila, nem preto em vez de “de cor” que, como se sabe, até pode ser branco, amarelo ou vermelho. Não se pode dizer Homens ao falar da Humanidade e sim homens e mulheres; qualquer dia, temos que acrescentar mistos, quando nos dirigirmos a uma assistência.

Depois temos os donos da correcção do vestuário (incluindo calçado e cor das meias). No século XXI temos ainda quem se arrogue o direito de criticar os outros pela indumentária que escolhe. Pior ainda, quem se ache no direito de classificar ou mesmo insultar politicamente os outros, em função do que escolhe vestir. Claro que em tempos que já lá vão e se espera não voltem, criticavam-se os jovens por usarem cabelo comprido e se vestirem com cores garridas. Felizmente, hoje em dia a liberdade de escolha chegou também ao vestuário. Mas resistem alguns que, agora ao contrário, criticam os outros por usarem a roupa de que gostam, seja uma gravata ou um laço. Ainda a propósito daquele célebre sequestro da Constituinte, lembro-me de José Luís Nunes, excelente e saudoso constituinte socialista, ser insultado pelos “operários da cintura industrial” e mesmo por alguns colegas de bancadas mais à esquerda e retorquir que não faltava mais nada ter que mudar de indumentária só por causa dos arroubos revolucionários daquela gente. E tinha toda a razão, acho eu.

Há também os donos da verdade, que acham que nunca se enganam, provavelmente porque nunca leram um livro de filosofia. Felizmente e para azar deles, já que a verdade tem muitas cores, a História vem sempre provar que se enganaram muitas vezes, embora raramente o reconheçam.

Há mesmo os donos de pessoas que, por uma razão ou por outra, pensam que ficam donos de alguém para toda a vida. As relações entre as pessoas, particularmente as que envolvem afectos que não são contratualizáveis, têm que ser construídas diariamente. Os filhos por exemplo, não pertencem aos pais, ao contrário do que muitos julgam. Os pais devem apenas tratar deles o melhor possível enquanto os filhos deles dependem, dando-lhes asas para poderem voar o mais alto e longe possível.

Muitos “donos” há por aí. Na maior parte das vezes são apenas donos do seu próprio umbigo que lhes parece ser do tamanho do universo, não tendo humildade para reconhecer que “somos todos humanos, demasiado humanos”, e que a vida é muito curta para ser gasta a olhar apenas para o espelho e a perguntar “se há alguém mais belo do que eu”.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Outubro de 2010

domingo, 24 de outubro de 2010

Evangelho do dia

Evangelho segundo S. Lucas 18,9-14.

Disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: «Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: 'Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.' O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: 'Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.' Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.»

sábado, 23 de outubro de 2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

TEMPOS DIFÍCEIS


Não são fáceis os tempos que atravessamos e os que se aproximam não parecem vir trazer mais facilidades, como se pode inferir de tudo o que “vemos, ouvimos e lemos”.
A discussão política tem vindo a ser muito centrada em volta do orçamento de Estado para o próximo ano, por uma razão muito simples. As finanças públicas estão a um nível próximo da hecatombe que se chama bancarrota. De acordo com os observadores externos, as medidas duríssimas em termos de impostos que aí vêm vão implicar uma recessão económica no próximo ano ou muito perto disso, quer por via do desinvestimento, quer por via da descida abrupta do consumo interno (et pour cause…).
Temos dois problemas muito graves: o primeiro está agora à vista de toda a gente e consiste num Estado com uma despesa desmesurada que tem que ser alimentada com impostos. O outro é o estado da Economia que será gravíssimo, embora não haja ainda uma noção clara do que se passa. De facto, o critério que foi adoptado internacionalmente para medir o crescimento económico dos países é o do Produto Interno Bruto porque permite obter medições fáceis de comparar. De acordo com muitos especialistas, o país está a viver uns dez por cento acima das suas possibilidades, tendo em conta precisamente critérios de produtividade associados ao PIB. Desconfio, no entanto, que a situação seja muito mais grave. Na medição do PIB entram bens tangíveis e bens não tangíveis. Ora bem, o que verdadeiramente interessa em termos económicos, é aquilo que se faz e que pode ser vendido, nomeadamente exportado. E aí, o nosso défice deverá ser muito mais elevado, talvez três vezes maior do que aquele que acima indiquei. Desde pelo menos a década de 90 que a Economia portuguesa, aquela que origina produtos vendáveis em concorrência, tem vindo a ser erodida. O que se passou na agricultura e nas pescas está à vista de todos. Mas também boa parte da indústria tem vindo a sofrer com as políticas seguidas pelos governantes. Quer isto dizer que as medidas de arrefecimento do nível de vida vão continuar e ainda acentuar-se, se queremos recuperar competitividade e voltar a convergir com a média europeia, o que é crucial para nos podermos manter no clube de ricos que é a União Europeia com o seu Euro fortíssimo.
Há noções que temos que ter bem conscientes, quer ao nível de despesas nacionais, quer locais. A loucura despesista que nos assolou a todos nas últimas décadas tem de ser contida. A nível nacional já todos percebemos os disparates das SCUTS, dos novos e menos novos aeroportos (como o do Porto), dos TGV’s, dos estádios vazios de assistentes, das auto-estradas ao lado umas das outras, dos centros culturais faraónicos, das sedes ceaucesquianas de bancos do Estado, dos moinhos de vento pagos pelas nossas facturas de electricidade, etc. etc. etc.
Mas a nível local também não é mais possível pretender que cada povoação tenha o seu pavilhão coberto como eu costumo dizer. Nem se compreende que uma Universidade tenha edifícios inteiros às moscas e continue a querer meter o Rossio na Betesga como a futura (?) biblioteca da Faculdade de Direito, bem como aquela colina inteira do pólo III junto aos HUC. Peço desculpa a quem não gosta, mas alguém tem que dizer que “o rei vai nu”.
Esta crise vai tocar a todos. Este é o tempo de por os pés no chão, repensar tudo e decidir onde melhor gastar o dinheiro dos impostos. Não nos esqueçamos fundamentalmente, que o Estado aos seus diversos níveis existe para as pessoas e não o contrário, porque se trata do Bem Comum. Que todos tenhamos consciência disso e saibamos contribuir ao nosso nível para a mudança necessária e urgente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Outubro de 2010

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

PREFERIR ORIGINAIS


Nos últimos tempos surgiram em Portugal notícias sobre a descoberta de fraudes de pinturas de pintores conhecidos cujas obras atingem elevados valores no mercado. Embora seja relativamente frequente, a falsificação de quadros não deixa de ser surpreendente. Os compradores são normalmente pessoas com grande poder económico e supostamente com suficientes conhecimentos técnicos que lhes deveriam permitir evitar serem enganados de forma por vezes grosseira. Mas o desejo de possuir originais valiosos é tão grande que cega muitas vezes.
Já noutra forma de arte, a música, os originais são as obras tocadas ao vivo. De facto, as gravações, ainda que ouvidas com os melhores aparelhos reprodutores de som não passam disso mesmo: reproduções de originais. As obras musicais tocadas ao vivo nunca se repetem em absoluto, pelo que esses espectáculos são sempre uma experiência nova. Isto é válido para diversos tipos de música. Há poucos dias tivemos o exemplo da vinda dos U2 a Coimbra. Todas aquelas dezenas de milhares de pessoas que se deslocaram a Coimbra para os ouvir e ver ao vivo têm as gravações das suas músicas em casa, nos carros e nos aparelhos de MP3. Mas o entusiasmo pelo original é tão grande que motivou aquela festa gigantesca. Acresce que a música dos U2, sendo em si mesma algo limitada em termos harmónicos e melodiosos como toda a música rock e pop, é acompanhada nos concertos por toda uma parafernália tecnológica que entusiasma vivamente os assistentes, o que é impossível de suceder na audição da música gravada.
Os apreciadores de Jazz, cuja característica principal é o improviso, sabem bem que ouvir um CD nunca substituirá uma sessão ao vivo. Os festivais de Jazz atraem sempre milhares de fans em todo o mundo que não perdem a oportunidade de ir ouvir presencialmente os seus músicos preferidos e sentir toda a emoção da música a ser construída à sua frente.
Na chamada música clássica passa-se algo semelhante. Não há dois maestros que interpretem a mesma obra de maneira rigorosamente igual. Para além das partituras permitirem sempre alguma margem de interpretação, a sensibilidade pessoal dos maestros, a sonoridade própria das diferentes orquestras e as diferentes combinações de programas permitem obter sensações diferentes de cada vez que se vai a um concerto, que se torna assim uma experiência irrepetível. O hábito de ouvir gravações, possibilidade tecnológica que tem evoluído de forma impressionante, veio alterar os comportamentos dos públicos dos concertos de música clássica, nem sempre para melhor. À audição dos diferentes andamentos segue-se agora um silêncio quase litúrgico, mesmo em peças que literalmente pedem aplausos nessas alturas. Mas hoje em dia batem-se palmas de maneira muito circunspecta apenas no final das peças, olhando-se mesmo de lado para os assistentes que, entusiasmados pela música que ouviram nos diversos andamentos, são automaticamente levados a aplaudir os músicos que, esses sim, ficam bem satisfeitos quando percebem que o público gostou mesmo do que ouviu.
Outra originalidade bem curiosa, mas na realidade sem graça nenhuma, passou-se no último “dia mundial da música”, entre nós. Segundo uma notícia deste mesmo jornal de 2 de Outubro último, “nas principais comemorações do dia Mundial da Música no distrito de Coimbra que decorreram ontem, no mosteiro de Lorvão, não houve música”. Pelo resto da notícia, percebe-se que houve mais uma promessa de reabilitação futura do órgão de tubos daquele Mosteiro. Não está mal. Bem podem esforçar-se os elementos da Orquestra Clássica do Centro a fazer chegar a música de qualidade a todo o lado e a toda a gente, que as comemorações oficiais do Dia Mundial da Música se fazem “a dar música”, como se costuma dizer: mais uma originalidade dos nossos tempos e da nossa região.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Outubro de 2010