segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O Gosto pela Música





Entre 1956 e 1985, isto é, durante praticamente trinta anos, João de Freitas Branco manteve um programa na estação de rádio pública portuguesa, primeiro Emissora Nacional e depois Rádio Difusão Portuguesa, em que divulgou, explicou e ensinou a gostar da música dita clássica ou erudita. Gerações de portugueses adquiriram o gosto pela música ao conhecerem-na melhor, desenvolvendo em consequência disso espírito crítico, exigência e capacidade de discernimento perante a oferta musical.
Eram tempos em que os músicos profissionais portugueses encontravam poucas saídas para o seu trabalho, embora as poucas orquestras existente fossem de altíssimo nível. Lisboa e Porto eram as cidades-sede dessas orquestras. A actual situação é completamente diferente. Há diversas orquestras profissionais com diferentes formações mais ou menos completas um pouco por todo o país, desde o Norte ao Algarve.
Isso tornou-se possível por, em primeiro lugar haver escolas superiores a garantirem a adequada formação musical e depois pela livre circulação de pessoas na Europa que trouxe até nós muitos músicos que escolheram Portugal para viver e trabalhar.
Embora ainda não seja apoiada pelo Estado como outras orquestras designadas regionais, contando fundamentalmente com o apoio financeiro da sua Câmara Municipal também Coimbra tem, há 15 anos, uma orquestra profissional a trabalhar de forma ininterrupta, hoje com uma formação clássica, a Orquestra Clássica do Centro.
Durante a última semana, a OCC teve dois concertos importantes que demonstram a sua importância para Coimbra e para a região Centro. No Dia 1 de Outubro em que se assinala o Dia Internacional da Música, a OCC apresentou-se na antiga Igreja do Convento de S. Francisco em Coimbra após a conclusão das obras de recuperação do edifício. O programa incluiu uma Abertura do compositor português Marcos Portugal que, curiosamente foi sempre mais tocado e conhecido no estrangeiro, nomeadamente em Itália, do que no nosso país, a Sinfonia nº 35 de Mozart e o Concerto para piano nº3 de Beethoven com o solista Artur Pizarro. O entusiasmo do público traduzido pelos aplausos no fim de todas as peças foi evidente. A actuação da orquestra dirigida pelo Maestro José Eduardo Gomes foi a prova de quanto a falta do apoio do Estado à OCC é incoerente, injusta para a orquestra e culturalmente lesiva para a cidade de Coimbra. Sendo actualmente reconhecido como um dos maiores pianistas portugueses, Artur Pizarro foi brilhante em Beethoven e ainda no Chopin que, fora do programa, ofereceu aos que naquela noite se deslocaram a Santa Clara.
Uma semana depois, a OCC foi a Castelo Branco apresentar-se noutro concerto, no Cine-Teatro Avenida daquela cidade. Tratou-se de um concerto completamente diferente, demonstrando a amplitude do seu actual repertório. O programa incluía a Abertura Coriolano de Beethoven, o Concerto de Piano de Grieg e três obras da autoria do compositor luso-cabo-verdiano Vasco Martins incluídas no último CD editado pela OCC. O concerto resultou da colaboração entre a OCC e a ESART que é a Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco, tendo vários alunos daquela escola sido incluídos na orquestra. O solista ao piano neste concerto foi o brasileiro Steven Chervenkov que, embora jovem, apresenta já um notável currículo internacional.
Castelo Branco, tal como Aveiro, são cidades da zona centro que possuem ensino superior na área da música, ao contrário de Coimbra onde existem Conservatórios que fazem um excelente trabalho mas cujos alunos que pretendam seguir os seus estudos superiores na área da música têm que procurar outra cidade para esse fim. Esta é uma situação estranha, tendo em conta a oferta de ensino superior em Coimbra, sabendo-se que os músicos profissionais, como por exemplo os da OCC, têm hoje em dia estudos superiores com licenciaturas, mestrados e doutoramentos nas suas áreas de trabalho.
As actuações da OCC um pouco por toda a Região Centro, mas também fora dela, têm sido uma constante ao longo da sua existência. O gosto pela música constrói-se, tocando-a e levando-a junto dos públicos. Para que tal seja possível é necessária vontade e o esforço de muitos, porque uma orquestra é um organismo extremamente complexo, a diversos níveis, incluindo o financeiro. Razões para que a OCC passe rapidamente a ser uma orquestra regional, garantindo-lhe a estabilidade necessária para continuar a construir “gosto pela música”.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Navegar com coordenadas erradas e sem Norte



O comandante do navio bem dava ordens de rumo ao marinheiro do leme, mas havia sempre alguém a dizer-lhe que a derrota andava bem longe da que devia ser, embora as condições meteorológicas até fossem as habituais naquele mar. Temia, aliás, que o soberano que tinha as suas próprias antenas a bordo começasse a desconfiar que algo estivesse a correr mal na navegação que pudesse colocar em causa que o fim da viagem fosse o destino marcado na carta de navegação.
Resolveu chamar os dois imediatos para fazer uma análise da situação e decidir quais as melhores ordens a dar, porque ainda não estando percorrida nem metade da viagem, o navio parecia ter alguns problemas não habituais. Claro que não gostava nada de ter dois imediatos, mas quando o soberano lhe havia dito não ser ele a primeira escolha para comandar aquele grande navio, não teve outra hipótese senão fazer aquela partilha de comando, confiando que os imediatos o acompanhariam empenhadamente até ao fim da viagem.
Quando se reuniram à volta da mesa das cartas na ponte, não percebeu a carta que lá estava e perguntou de onde tinha vindo, porque era muito diferente das habituais onde ele tinha aprendido a trabalhar e que sempre lhe tinham servido para preparar a navegação. Um dos imediatos respondeu-lhe de imediato que as cartas velhas tinham sido atiradas ao mar, que hoje já não serviam por os tempos serem outros e não se poder estar a seguir as regras ditadas por almirantados estrangeiros caducos, que colocavam em causa a soberania. 

As velhas coordenadas estavam calculadas em função de critérios obsoletos e levavam sempre aos mesmos resultados definidos por outrem, que não estavam de acordo com os novos objectivos definidos. O comandante ficou atrapalhado, mas logo se recompôs. Afinal, tinha muita experiência e não era por uns novatos o querem levar pelos seus próprios caminhos que se iria perder. Lembrando-se dos seus velhos cálculos logo ali decidiu, sem o comunicar, seguir o seu caminho sem informar os imediatos do facto; para tal, bastava ir ao computador e fazer a simples transformação de coordenadas, que a navegação depressa iria para o rumo que ele próprio pretendia, sem os imediatos perceberem nada.
No entanto, passados uns dias, um marujo de comunicações que estabelecia mais directamente contactos com o soberano, veio informá-lo de que aquele continuava nervoso, convicto que estava de que o rumo do navio continuava a afastar-se do que estava estabelecido. Que diabo pensou o comandante com os seus botões, sempre receoso das reacções do soberano que a qualquer momento podia chamar por alguém que o substituísse no comando. Lá mandou vir outra vez os imediatos à ponte e tentou perceber a razão da continuação do desvio da rota traçada com tanto cuidado. As coordenadas lá continuavam com os respectivos erros compensados da forma que havia calculado, mas havia ainda algo que não batia certo.
Foi quando o outro imediato o informou sobre a agulha. Na realidade, ao largarem do porto tinha mexido na agulha giroscópica porque, tal como o outro imediato no que dizia respeito às coordenadas geográficas, entendia que o norte pré-definido estava errado. Acrescentou que os rumos definidos para aquela viagem necessitavam de um referencial próprio que não tinha nada a ver com uma estrela escolhida há séculos por gente atrasada que, se calhar, ainda pensava que o Sol rodava em volta da Terra.
O comandante mais uma vez se serviu da sua célebre capacidade de resolução de problemas e, manifestando a sua total concordância com os princípios definidos pelos seus imediatos, lembrou-se da velha bússola magnética e tratou de calcular com discrição o erro da giro e de proceder à respectiva compensação.
Claro que, com o tempo entretanto decorrido, a rota seguida tinha-se desviado tanto do ponto de chegada e o navio tinha dado tantas voltas em círculos, que o combustível estava quase acabado e o porto de chegada parecia que tinha fugido para o outro hemisfério. Não valia a pena acenar com o sucesso finalmente conseguido de acertar com o rumo. Esse, embora fundamental, era apenas um instrumento para atingir o destino e, finalmente, o navio teve que encostar no porto mais próximo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A verdade da mentira




Adicionar legenda
 O fenómeno que constitui a candidatura de Donald Trump às eleições presidenciais americanas tem sido objecto das mais diversas análises políticas, quer abordando o fenómeno populista que se lhe encontra subjacente, quer tentando compreender como o partido Republicano se deixou transportar para esta candidatura.
Mas há outro aspecto da candidatura de Donald Trump e do seu discurso que vai muito para além disso e tem a ver com a sua relação com a verdade. De facto, o candidato republicano faz constantemente afirmações bombásticas que não têm nada a ver com a realidade dos factos, mas que produzem ondas de choque sociais e que, a certa altura, parecerão evidências a muitas pessoas que, ou já o apoiam, ou acabam a apoiá-lo. O exemplo da afirmação de que Obama é responsável pela criação do “estado islâmico” é paradigmático. Questionado sobre a afirmação e confrontado com o facto de Obama ser contra o EI e até lutar contra ele Trump, longe de se retratar, manteve a afirmação e ligou-a com a saída das tropas americanas do Iraque.
O uso da mentira na política não é novo, a profissão de político mentiroso deve mesmo ser a segunda profissão mais antiga do mundo, como se costuma dizer. A própria utilização de mistificações, ou aquilo que hoje em dia chamamos mitos urbanos também é bem conhecida da História, como a utilização dos famosos falsos “protocolos de Sião” pelos nazis como justificação para os ataques aos judeus. As redes sociais da internet são um meio poderoso para o alastrar da mentira e da manipulação política, já que as pessoas raramente se dão ao trabalho de ir verificar as fontes, a veracidade ou até a data daquilo que é apresentado. Aliás, os próprios “protocolos de Sião” ainda por aí circulam nas redes sociais, havendo muita gente que acredita naquilo.

Mas há um fenómeno que está a alastrar na política a nível mundial e a que David Roberts chamou “pós-verdade”. Trata-se construir todo um edifício discursivo político sem qualquer relação com a verdade.
A utilização da técnica da “pós-verdade” traz imensos problemas. Ao abordar esta problemática, a revista “Economist” de há duas semanas sublinha que “a alteração relativamente às habituais mentiras dos políticos reside em que a verdade não é falsificada ou retorcida, mas passa a ser de importância secundária”. Como mostra a campanha de Donald Trump, os sentimentos passam a substituir os factos. Eis por que os opositores têm tanta dificuldade em combater os políticos da “pós-verdade”: ao fazê-lo, colocam-se no campo deles e a prova de que estão errados torna-se um caminho espinhoso e armadilhado, de onde fugiu qualquer racionalidade.
A campanha do chamado “brexit” é outro bom exemplo da utilização da “pós-verdade” pelos defensores da saída do Reino Unido da União Europeia. Por exemplo, garantiram aos ingleses, e ficou provado que estes acreditaram, que o seu país pagava 350 milhões de libras por semana à União Europeia, que poderiam ser gastos no Serviço Nacional de Saúde britânico que atravessa graves problemas de financiamento. O efeito sentimental conseguido pela imagem do “desvio” do dinheiro dos burocratas europeus para o serviço de saúde foi completo, ainda que não tivesse qualquer relação com a realidade. Hoje em dia muitos britânicos, que não foram votar ou que o fizeram pela saída, estão arrependidos por concluírem que foram miseravelmente enganados, mas agora é tarde. Como somos sempre muito rápidos a copiar o mau, este problema também já está entre nós. Quando há poucos anos um ex-primeiro ministro começou a acusar a oposição de usar uma “narrativa”, não estava a fazer mais do que informar toda a gente que o seu discurso constituía ele próprio uma efabulação à volta de pressupostos sem qualquer relação com a realidade. Difícil de desmontar, essa técnica política veio a ter, como bem sabemos, consequências pesadíssimas para todos nós.
Claro que, como se vê, a realidade acaba sempre por fazer o seu aparecimento com toda a força; já Abraham Lincoln dizia ser possível enganar a todos por algum tempo, bem como enganar alguns por todo o tempo, mas ser impossível enganar toda a gente o tempo inteiro. Mas, entretanto, já foram provocados muitos estragos embora os próprios inventores da mentira continuem, com toda a certeza, a manter o seu discurso, sempre acusando outrem das consequências.
Um dos maiores estragos será certamente o minar da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. E aqui não podemos ter contemplações perante este tipo de exercício da política: não é por ser “o nosso mentiroso” isto é, o que ajudámos a eleger pelo voto que uma mentiroso deixa de o ser. A nossa obrigação de cidadania é não calar a mentira total e denunciá-la, custe o que custar. Até porque a verdade existe.

sábado, 24 de setembro de 2016

Não sou marxista

Não concordo que esta seja a definição de Marx de sociedade decente:“De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”.
Todas as tentativas para construir uma sociedade decente dentro deste princípios acabaram no desastre. Hoje em dia nem é preciso discutir filosofia para chegar a essa conclusão, basta verificar a realidade. Com milhões de mortos a atestá-la. 

Perfeição

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A Senhora Mortágua

O que disse a sra. Mortágua (tal e qual):
Eu posso encontrar medidas que me permitam, através do Estado Social, redistribuir alguma riqueza, posso encontrar medidas que, através do Estado Social, mitigar alguma pobreza, mas eu não vou conseguir acabar com as desigualdades se eu não mexer no sistema que produz as desigualdades.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Uma guerra longa que acaba.




 Há guerras que, mesmo depois de se pensarem terminadas, continuam ainda até que o seu fim verdadeiro se verifique. Quando se olha para trás muito tempo depois, isso é fácil de perceber como é o caso da chamada “guerra dos cem anos” que, na realidade até durou mais de 110 anos e se foi desenvolvendo episodicamente nos séculos XIV e XV entre a França e a Inglaterra, envolvendo toda a Europa ao longo dos anos, através dos aliados de um e do outro contendor.
A II Guerra Mundial teve o seu fim oficial em 2 de Setembro de 1945 com a assinatura da rendição do Japão a bordo do USS Missouri, com festejos pelo mundo inteiro, no convencimento de que se tinha finalmente entrado numa era de Paz duradoura.

 Não foi preciso esperar muito tempo para se verificar quão efémera fora essa satisfação. Logo em Março de 1946 Churchill traduz por palavras o que grande parte do mundo já concluíra, no seu famoso discurso em que afirmou: “De Stettin no Báltico até Trieste no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente”. Stalin tinha aproveitado o avanço dos exércitos soviéticos sobre a Alemanha através da Europa de Leste, para impor regimes comunistas em todos os países aí situados.
A constatação de Churchill significou o reconhecimento do antagonismo entre dois blocos, o soviético e o ocidental, que rapidamente evoluiu para uma situação que se designou por “Guerra Fria”, mas que na realidade foi bem mais quente do que a expressão pode deixar supor. Se os dos países-pólo dessa situação, os EUA e a União Soviética não entraram directamente em guerra, daí a designação de guerra fria, os conflitos armados ligados ao confronto entre os dois blocos verificaram-se um pouco por todo o mundo, desde a Ásia com as guerras na Coreia e no Vietname, até ao médio-oriente e ao próprio continente americano, essencialmente na América Central e também na América do Sul, como aconteceu na Nicarágua, no Peru ou na Argentina.
Até mesmo em Portugal, no chamado PREC a seguir ao 25 de Abril, por muito pouco não se verificou um conflito desse tipo.
O fim da “guerra fria” verificou-se em 1991 com a dissolução da URSS e desaparecimento do Pacto de Varsóvia. Hoje em dia há muito quem seja de opinião que a “guerra fria” foi uma continuação da II Grande Guerra, tal como esta última, no fundo, teve raízes directas na deficiente resolução da I Grande Guerra no mal desenhado Tratado de Versalhes de Junho de 1919.
Mas a “guerra fria” não terminou completamente em 1991. Um dos conflitos armados nela integrado só agora acabou, com o cessar-fogo, assinado em 29 de Agosto último na Colômbia entre o governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), guerrilha marxista que lutava pela revolução e estabelecimento de um regime comunista no país. Não se pense que se tratou de um conflito menor. Teve o seu início em 1964, sendo por isso o conflito armado mais longo das Américas e provocou mais de 220.000 mortos. O líder do auto-proclamado “Ejercito del Pueblo” Rodrigo Londoño conhecido por Timochenko manifestou o seu contentamento com o fim da guerra, afirmando que” não mais pais enterrarão os seus filhos e as suas filhas por morrerem na guerra”, e muito foram, na verdade.
Olhando para trás, impressiona como esses conflitos que provocaram tantas mortes e sofrimento foram basicamente em vão. A guerra do Vietnam é, talvez, o exemplo mais acabado da inutilidade de uma guerra pavorosa. Durou trinta anos entre 1945 e 1975. Os primeiros derrotados foram os franceses; poucos anos depois os EUA resolveram intervir a favor do Vietname do Sul contra o Norte comunista, tendo sofrido uma derrota humilhante, naquilo que até hoje constitui uma questão traumática na sociedade americana. Não há números exactos para as baixas deste conflito, mas no total terão sido mais de 3 milhões de mortos entre militares e civis, dos quais cerca de 60.000 mortos e desaparecidos e mais de 300.000 feridos americanos. Hoje em dia, oficialmente o regime político do Vietname unido é comunista, mas na realidade a economia é capitalista e o país é aberto e visitado por turistas, incluindo muitos americanos que lá combateram.

Embora se possa considerar que este conjunto de conflitos armados localizados nos “quintais” das superpotências e espalhados um pouco por todo o mundo possa ter sido o preço a pagar para evitar uma guerra directa entre a URSS e os EUA que seria um desastre planetário, não deixa de ter sido uma desgraça humanitária para os países envolvidos. E, vê-se hoje, poderia e deveria ter sido evitado por ambas as potências quanto mais não fosse, pela sua completa inutilidade histórica.