segunda-feira, 30 de setembro de 2019

TANCOS, A NOSSA VERGONHA


A história é hoje do conhecimento público: em 28 de Junho de 2017, um grupo de 9 homens assaltou os Paióis Nacionais de armas da base militar de Tancos, levando cerca de 300 kg de material de guerra, armas e explosivos. O alarme nacional foi imediato. Como seria possível, numas instalações militares daquela sensibilidade existir uma vedação com aquela fragilidade, não haver circuito interno de televisão e haver períodos tão longos entre rondas? Tudo perguntas mal respondidas, tendo havido um passa-culpas das chefias militares absolutamente inacreditável. Para além do roubo em si, tudo começou a correr mal nesse mesmo dia, como naquele ditado “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. E o descalabro continuou de tal forma que o próprio Presidente da República, perante as câmaras da televisão e em directo, se deslocou ao local acompanhado pelo ministro da Defesa e secretário de Estado, bem como de inúmeros responsáveis militares. Entretanto, soube-se da descrição do material furtado, imagine-se, por uma notícia saída num jornal espanhol e o elevado número de notícias sobre o assunto surgidas na imprensa estrangeira dava bem conta da surpresa e espanto gerais originados pela falta de segurança de instalações militares de um país europeu e da NATO. Em 18 de Outubro de 2017 foram encontradas 44 armas de guerra, granadas de mão ofensivas, granadas foguete anti-carro, granadas de gás lacrimogéneo e explosivos, tendo ficado a faltar munições de 9mm. Nesse mesmo dia, a então Procuradora Geral da República Joana Marques Vidal telefonou ao ministro da Defesa protestando contra o facto de a operação de recuperação ter sido levada a cabo numa operação paralela pela Polícia Judiciária Militar, quando estava atribuída à Polícia Judiciária, provavelmente assinando nesse momento o fim do seu próprio mandato.
Em Outubro do ano seguinte, o ministro da Defesa Azeredo Lopes, não aguentando a pressão do caso demitiu-se, no que foi seguido de imediato pelo chefe de Estado Maior do Exército Gen. Rovisco Duarte. Estes dois responsáveis máximos tinham sido protagonistas, no decorrer do ano, das mais desencontradas e mesmo disparatadas afirmações sobre o caso que muito contribuíram para desacreditar as respectivas instituições num caso, o próprio Governo, no outro o Exército. Pelo meio, uma comissão de inquérito na Assembleia da República foi palco de afirmações e conclusões que deixaram dúvidas a muita gente, dando todo o aspecto de branqueamento de atitudes ministeriais e militares.
Na semana passada chegou ao fim um inquérito judicial ao que se passou tendo sido, no exacto último dia do prazo, formulada acusação contra 23 arguidos, entre os quais o ex-ministro da Defesa que foi acusado de quatro crimes: denegação de justiça, prevaricação, abuso de poder e favorecimento. Está aqui em causa, não o assalto em si, mas o encobrimento das inúmeras ilegalidades cometidas pela instituição militar para recuperar o material furtado. De caminho foram tornadas públicas as provas que o Ministério Público anexou às acusações, ficando a saber-se de muitos pormenores, incluindo mensagens trocadas pelo ex-ministro com um deputado socialista, escrevendo que sabia do que se passava.
Como é evidente, as acções de um ministro no exercício das suas funções comprometem o Governo a que pertence e, essencialmente, o Primeiro-Ministro que o escolheu e nomeou, com o poder de o demitir a qualquer momento, pouco interessando o que sabia ou não. Neste caso, o facto de se tratar do ministro da Defesa tem uma envolvente de responsabilidade acrescida, dado que às Forças Armadas portuguesas incumbe, constitucionalmente, a defesa militar da República.
Claro que, no que diz respeito à Justiça, prevalece a presunção de inocência de todos os acusados, também neste caso. Mas, no que respeita à acção de ministros, agindo enquanto tal e não apenas como cidadãos normais, a componente política está e deve estar sempre presente. Como se tudo isto não bastasse, assistiu-se ainda a uma tentativa canhestra de envolver a figura do Presidente da República e, de novo, acusações de conspiração ao Ministério Público. “Plus ça change…”.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Setembro de 2019

Marianne Faithfull -- The Ballad Of Lucy Jordan HD