segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

ANO NOVO, VIDA COMUM?

 


Está quase a acabar este ano de 2020, que é um ano que todos gostaríamos de esquecer, mas que vamos todos, certamente, recordar pelos mais diversos motivos. Alguns bons, que têm a ver essencialmente com a resposta a uma pandemia viral. Pela primeira vez a humanidade foi capaz de identificar com rigor o vírus causador da pandemia pouco tempo depois do seu início e, muito importante, conseguiu desenvolver vacinas específicas em menos de um ano. Proeza farmacológica só tornada possível pelo desenvolvimento científico na área do ADN e ARN que se verificou nas últimas décadas e da capacidade tecnológica associada à investigação dos grandes laboratórios farmacêuticos. O investimento público de diversos países no apoio à investigação com vista ao desenvolvimento destas vacinas terá sido fundamental para que os prazos de desenvolvimento tenham sido tão encurtados, sabendo-se do tempo que normalmente é necessário para preparar novas vacinas. A resposta dos serviços de saúde um pouco por todo o mundo, em termos tecnológicos, humanos e organizacionais marcou a diferença relativamente a outras pandemias da História. Entre nós a dádiva pessoal e profissional dos profissionais de saúde, aos vários níveis, que tiveram que lidar directamente com os doentes COVID-19, em particular nos serviços cuidados intensivos, foi e é de registar, de louvar e de agradecer por toda a sociedade por ter, tantas vezes, raiado o puro heroísmo.

Mas, embora não se possa comparar com outras pandemias ao longo da História, as consequências da pandemia são, ainda assim, graves tanto a nível mundial, como no nosso país. Na totalidade verifica-se a existência de cerca de milhão e meio de mortes no mundo, havendo a registar, entre nós mais de 6.400 óbitos devidos ao vírus SARS-CoV-2 com cerca de 400.000 casos confirmados. No ano de 2020 deverá verificar-se um total de mais de 120.000 óbitos em Portugal, algo que não sucedia desde 1946. Se o envelhecimento da população pode explicar uma parte deste aumento, a verdade é que há 4 a 5 mil mortes não devidas ao COVID-19, sendo ainda de ter em conta a radical diminuição de gripes relativamente aos anos anteriores. Isto é, podemos felicitar-nos dizendo que «o SNS respondeu bem», que tal não corresponde à verdade; há estes óbitos a mais e sabemos todos muito bem que milhares de operações cirúrgicas ficaram por realizar, ainda muitas mais consultas por fazer e, o que pode revelar-se trágico nos próximos anos, muitos cancros ficaram por ser precocemente detectados.


As consequências directas na economia, quer na produção, quer no emprego estão ainda por se conhecer na totalidade, dados os apoios excepcionais e temporários que o Estado proporcionou a empresas e pessoas individuais, embora esse apoio tivesse sido dos mais reduzidos da Europa, pela nossa fragilidade orçamental e enorme dívida externa, nomeadamente pública. Os apoios têm-se traduzido essencialmente em empurrar as dificuldades para diante, pelo que mais cedo ou mais tarde as falências e desemprego irão fatalmente crescer de uma forma que até hoje desconhecemos. Qualquer que seja a dimensão dos apoios financeiros europeus, não será suficiente para cobrir as quebras já verificadas na economia e nas famílias, pelo que a recuperação dos níveis de 2019 estará ainda muito longe.

O Primeiro-Ministro reconheceu há poucos dias que foram cometidos erros pelo Governo na resposta à pandemia. Ainda bem que o fez, mas só manifestou uma evidência, aos olhos dos portugueses, para quem a realidade não se limita aos telejornais das televisões e que não podem deixar de notar o crescente número de pessoas a precisar de ajuda alimentar. Uma das consequências mais evidentes da pandemia é o agravar das desigualdades sociais atirando para a miséria uma larga franja da classe média.

A luta contra a pandemia é uma verdadeira guerra que se trava em diversas frentes; científica, sanitária, económica, educacional e social. Para além do estabelecimento do medo generalizado, é sabido que nas guerras a primeira coisa a morrer é a verdade. Também nesta guerra a mentira, a desinformação e mesmo as teorias da conspiração têm tido um palco enorme de actuação. Cabe-nos a nós um esforço, ainda maior do que em tempos comuns, para perceber quem, como e porquê nos tenta manipular, mantendo uma atitude de abertura à ciência e a todos os que, com verdade, nos tentam apoiar e mesmo orientar neste mar encapelado de informação.

E, finalmente, eis que vai começar o ano de 2021. Felizmente, a vacinação para este coronavirus começou, ainda que simbolicamente, nos últimos dias de 2020. É um sinal de esperança, embora lamente não poder, como é tradição, escrever que o novo ano vai trazer vida nova. Se nos trouxer uma aproximação à vida que até há nove meses era normal, já não será mau mas, mesmo que seja pouco, é esse o desejo que faço para 2021.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Dezembro de 2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

March (From "A Clockwork Orange")

Anneliese Rothenberger Oh du fröhliche - Weihnachten - HD

Economia sem alma e sem sentido.

 


Decidiu-se instalar uma grande central fotovoltaica para produção verde de electricidade. À partida, economia mais ecológica, não há. Claro que anteriormente a famosa herdade da Torre Bela tinha outras actividades económicas a substituir pela central de energia. Desde logo, as árvores, parece que eucaliptos, que se teve que abater. Por aí não há problema - o mundo vegetal ainda não tem defensores do seu sofrimento. O problema era o grande número de animais «selvagens» que por lá havia para as montarias. Solução: juntar o útil ao agradável: livramo-nos dos animais e ainda fazemos algum dinheiro com isso, principalmente com uns espanhóis que gostam de carregar no gatilho, seja como for. Só que, como o anterior Rei de Espanha já demonstrou, matar animais grandes sem fotos não dá gozo. E é assim temos os nossos políticos todos a dizer ai que selvagens, isto não é nada ético!
País e gente da treta, para não escrever a palavra certa que começa com "m" e acaba com "a".

 

 

Abates de animais para instalar painéis solares na Torre Bela começaram há meses - TSF

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O dom de ouvir

 


Quando leio ou ouço cientistas e investigadores tecnológicos descrever com entusiasmo a novidade de um futuro cheio de inteligência artificial em que numerosos sensores formarão uma imagem o mais próxima possível da realidade, não posso deixar de sorrir. É que o nosso cérebro com os seus cinco sentidos já faz isso mesmo e «trata» toda a informação que recolhe de uma forma que desconfio que será impossível de replicar algum dia com computadores, ainda que sejam os novos quânticos: é que, como nos ensina um grande cientista português, António Damásio, o nosso corpo alia inteligência à emoção. Ainda por cima esses «inputs» não materiais são por todos nós tratados em simultâneo e guardados para mais tarde serem recordados de forma insuspeitada em relação a cheiros, sons ou determinadas situações específicas, como passar pelo mesmo local em que foram originados.

E uma das «informações» que os nossos sentidos transportam para o nosso cérebro é a dos sons. Por vezes essa informação não é mais do que ruído, outras vezes encanta-nos por trazer a Natureza para dentro de nós como sucede com o barulho das ondas do mar ou o cantar dos pássaros e outras vezes maravilha-nos pela capacidade humana de construir o que chamamos música, umas vezes simples outras de uma complexidade extraordinária.

No dia em que escrevo esta crónica passam 250 anos sobre o dia de baptismo de uma das personalidades mais marcantes da História da Humanidade, cuja data exacta de nascimento não é conhecida: Ludwig van Beethoven. Claro que todos nós o conhecemos como um dos maiores compositores que já viveram, mas Beethoven foi muito para além disso.

É que Beethoven simboliza também o poder do cérebro humano. Tal como Einstein muito mais tarde viria a descobrir aspectos encobertos da ciência apenas através do desenvolvimento de teorias físicas expressas por fórmulas matemáticas que só mais de cem anos depois a experimentação conseguiu provar, Beethoven desenvolveu a sua música no cérebro. E só depois a transcrevia para o papel, porque durante a maior parte da sua vida Beethoven esteve surdo. 


A obra-prima que é a sua 9ª Sinfonia foi elaborada, em toda a sua complexidade, no cérebro do compositor. Aquando da sua estreia, o compositor nem sequer se apercebeu de que a sala vinha abaixo com os aplausos entusiásticos do público, porque não os ouvia como não ouvia a orquestra, as quatro vozes solistas e o coro que cantaram o poema de Schiller.

Para além da importância cultural que todos lhe reconhecemos, a música tem ainda a capacidade de nos oferecer a possibilidade de fugir intelectualmente ao confinamento provocado pela pandemia que com tanta perplexidade, medo e sofrimento quase nos destruiu o ano que agora acaba. Esta é a crónica «Visto de Dentro» que antecede o Natal e esta é precisamente a única época do ano que nos oferece o encanto de inúmeras músicas próprias que nos elevam e acalmam o espírito. Não será por acaso que o espírito natalício desde há muitos séculos entrou na cultura ocidental e não só, tendo inspirado S. Francisco de Assis e o seu Presépio e tantas melodias e poemas que apelam à fraternidade e simplicidade da mensagem do amor entre os homens de boa vontade.

De entre as músicas tradicionais da época do Natal, relembro "O du fröhliche" do séc. XVIII com poema de Johannes Daniel Falk cantada por Anneliese Rothenberger ou «O Pequeno Tambor» pelo Harry Simeone Chorale ou mesmo por Bing Crosby com David Bowie e «Feliz Navidade» de Jose Feliciano. Mas também «White Christmas» dos «nossos» Marina Pacheco e Paulo Ferreira com o Ensemble Orquestra Clássica do Centro.

Evidentemente, não é possível deixar de fazer uma menção especial a essa grande, enorme intérprete de canções de Natal que foi a inesquecível Mahalia Jackson, em particular a sua interpretação de «Silent Night». Tal como não se pode deixar de referir o «Adestes Fideles», tema tradicional de Natal tradicional tão antigo e que ainda tantos, eventualmente de forma errada, atribuem ao rei D. João IV talvez por ser tocado na capela da embaixada de Portugal em Londres e por isso mesmo ser conhecido por «Hino Português». E recordar José Afonso e a sua «Canção de Embalar».

A todos os leitores do Diário de Coimbra um Feliz e Santo Natal, com votos de um novo ano decididamente melhor do que este que agora termina, se possível com a família e a boa companhia da música de Natal.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Dezembro de 2020