terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Estado do sítio


Para quem segue com interesse a evolução da política portuguesa desde há décadas, a actual situação de crise política reveste-se de características muito interessantes. Algumas delas são uma repetição aproximada do passado, mas outras são singulares e trazem novidades.

A realização de eleições parlamentares antecipadas ou mesmo intercalaras não é em si uma novidade, tendo já acontecido por diversas vezes e por diversas razões, mas todas elas de carácter inteiramente político.

Foi o caso sucedido em Julho de 2004 quando Presidente Jorge Sampaio começou por aceitar que o PSD coligado com o CDS formasse novo Governo liderado por Santana Lopes, depois da demissão de Durão Barroso na sua ida para presidir à Comissão Europeia. Contudo, escassos quatro meses depois, Jorge Sampaio demitiu esse Governo que dispunha do apoio de maioria absoluta na Assembleia da República.

Mas a actual situação é muito diferente. Vamos ter eleições legislativas em Março de 2024 porque António Costa se demitiu de Primeiro-Ministro ao ser tornado público que estava a ser investigado pelo Ministério Público num caso relacionado com o que se designa habitualmente de uma forma genérica como corrupção. Não tinha de o fazer, até porque ainda nem sequer tinha sido constituído arguido, como ainda hoje não o foi, mas decidiu fazê-lo. Não se trata, portanto, de uma crise surgida por motivos políticos, fosse por falta de apoio parlamentar, fosse por razões de governação, mas sim por questões de Justiça. O que sucede pela primeira vez, em Portugal.

Talvez lembrado do que Sampaio acabou por fazer há quase vinte anos, Marcelo decidiu-se de imediato por eleições antecipadas.

E o ambiente político ante eleitoral está interessantíssimo. Tudo porque o PS se viu na necessidade de eleger um novo líder para substituir António Costa. Quase todos os outros partidos, com a notória excepção do Chega, aguardam pela eleição interna socialista para definirem as suas estratégias eleitorais. Na realidade, os dois principais candidatos são tão diferentes na sua apresentação pessoal, mas principalmente nos fundamentos políticos e nas estratégias para o país que se diria não ser possível coexistirem no interior do mesmo partido. Essas diferenças são evidentes em muitas áreas, mas acabam por ter ponto crucial, que tem a ver, na minha perspectiva pessoal, com o sucedido no Governo da Troika e no Governo da geringonça. O PS nunca aceitou a sua responsabilidade no programa acordado com a Troika para o resgate de Portugal e, em consequência, nunca reconheceu que esse programa trouxe sacrifícios aos portugueses, mas criou as condições para a recuperação económica desde 2014. Recuperação de que os governos de António Costa beneficiaram largamente, levando António Costa a perceber finalmente que a redução dos défices e da dívida pública eram cruciais para o país. A forma como o fez, através de uma carga fiscal enorme e de um corte radical no investimento público é outra questão, mas a verdade é que chegou a obter superavit nestes dois anos. Por linhas tortas, os objectivos dos sacrifícios da troika acabaram por entrar na política socialista de forma escondida, levando a que o próprio Paul Krugman não compreenda as razões do “milagre económico português”.


O fim da geringonça terá tido como razão verdadeira precisamente esta situação, já que o PCP e o BE nunca aceitarão superavit nas contas públicas, pela sua própria natureza, passando a ser esta questão a linha vermelha dentro da Esquerda com António Costa à frente do PS e do Governo.

Radicará aqui também a verdadeira diferença entre as candidaturas de José Luis Carneiro e de Pedro Nuno Santos. Enquanto aquele assume as “contas certas” como essenciais para o país, o último tem a posição exactamente contrária. E esta é, de facto, a questão nacional mais importante, tudo o resto vindo em consequência da opção escolhida. E boa parte do partido Socialista profundo já terá intuído isso mesmo. Se volta atrás nesta questão, não virá muito longe o momento em que o desastre nacional acontecerá inevitavelmente, com a provável consequência do desaparecimento do partido.


A escolha dos socialistas é tão importante e mesmo decisiva para o futuro de Portugal, que traz Esquerda e Direita ansiosas sobre qual será para definirem as suas próprias opções imediatas para Março de 2024. De facto, o que está em causa é a possibilidade de o PS ser parte do esforço para construir um Portugal verdadeiramente próspero e europeu ou a continuação do empobrecimento contínuo numa “apagada e vil tristeza” ditada por populismos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Dezembro de 2023

Imagens recolhidas na internet

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Justiça e política

 


“O Ministério Público solicitou esta quarta-feira uma pena de prisão suspensa de um ano para o ministro da Justiça, num julgamento sobre alegado abuso de poder, numa situação inédita”.

Não, o estimado leitor não leu mal. Assim começava uma notícia do Expresso na semana passada. Só que da notícia cortei alguns elementos. Na realidade, o Ministério Público em causa é o francês e o ministro da Justiça é do governo de França, chamando-se Éric Dupont-Moretti. Segundo o procurador do caso, o ministro “terá abusado da sua posição para instaurar processos administrativos contra quatro juízes com os quais teve conflitos quando era advogado” antes, portanto, de ser ministro. Sobre quem tem razão não faço a mínima ideia e nem estou preocupado com isso, tratando-se de uma questão puramente interna de França.

Mas a situação descrita não anda muito longe do que se passa em Portugal, embora com as diferenças evidentes. Desde logo, em França, há uma regra governativa não escrita, segundo a qual um membro do executivo deve demitir-se em caso de acusação e não de existência de apenas inquérito. É essa a situação do processo, embora o ministro não se tenha demitido, já que afirma que os ditos processos contra os juízes não partiram de si, mas que tiveram origem na administração.

As relações difíceis entre os mundos da política e da justiça andam assim na ordem do dia, e não apenas em Portugal. Também no país que é talvez o paradigma da República, o país da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, se assiste a uma luta, quase sempre de bastidores mas que, de vez em quando salta para a luz do dia com grande intensidade. Tal como cá.

A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade é muitas vezes ténue e de difícil definição exacta, seja porque as leis devem ser assim mesmo, gerais e abstractas, mas demasiadas vezes essa fronteira não é claramente definida por vontade do legislador. Os deveres de um Governo, nos dias de hoje, e na situação de membro de uma união política, incluem obrigatoriamente conseguir investimentos estrangeiros no país, lembrando-se aqui o caso exemplar da Auto-Europa que, só por si, significa uma parcela importante do nosso PIB, quer directamente, quer por indução através de fornecedores nacionais da empresa, quase toda ela exportadora. A negociação desse tipo de investimentos exige frequentemente confidencialidade, dada a sua própria natureza. Mas, mesmo nestes casos, há sempre um choque entre o carácter privado do investidor e o carácter público do Governo devendo, sobretudo este último, estar condicionado pelas regras pré-existentes que se aplicam a todos os eventualmente interessados não colocando em causa o equilíbrio de mercado ao atribuir vantagens a este ou aquele. Isto, ainda que o interessado esteja mais próximo de objectivos estratégicos definidos pelo Governo, logo de carácter político.

Mas quem define essa fronteira é a política, que é quem faz as leis. A justiça aplica essas leis, não as faz. Se o Ministério Público toma conhecimento de acções que de alguma forma podem ultrapassar aquela linha é sua obrigação entrar em campo e investigar, doa a quem doer.

Claro em quem alturas de crise aparece sempre quem defenda uma subordinação da justiça à política, como se isso fosse desejável ou mesmo admissível em democracia. Aliás é a própria Constituição da República que estabelece que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar …. e defender a legalidade democrática” estipulando-se ainda que o MP goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei. Bem sabemos que as leis podem ter leituras que dependem muitas vezes de quem as interpreta, por isso mesmo em todos os processos tem de existir uma acusação, uma defesa e um juiz independente para decidir de que é ainda possível recorrer para instâncias superiores, havendo mesmo a hipótese de pedir a constitucionalidade das leis aplicadas. É o que se espera neste caso que traz todos os portugueses inquietos e mesmo chocados com a demissão de um Governo na sequência do conhecimento de um processo-crime envolvendo o Primeiro-Ministro. Aguardemos, pois, pelo normal funcionamento da Justiça, num caso em que milhões de olhares estarão atentos ao desenrolar do processo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Novembro de 2023

Imagem recolhida na internet

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Portugal sem Governo

 


Sai um pacato cronista do país por alguns dias e, ao regressar, encontra um país outro com um Governo demissionário quando não tem ainda dois anos de funcionamento e, ainda por cima, com maioria absoluta. Tudo o que se havia pensado para a crónica semanal cai face a uma actualidade que se impõe de forma avassaladora e inescapável.

Diz-se que Júlio César se referiu aos nossos antepassados Lusitanos como sendo “aquele povo que nem se governa, nem se deixa governar” e parece tudo fazermos para que esse comentário se nos aplique ainda nos dias de hoje.

A recente evolução da situação política suscita dois comentários essenciais.

Em primeiro lugar é impossível deixar de verificar a difícil relação dos dois últimos primeiros-ministros socialistas com a Justiça. José Sócrates só foi preso e começou a sua saga do processo Marquês três anos depois de sair de primeiro-ministro mas, na realidade, os seus problemas com a Justiça haviam começado muito antes, embora enquanto governante se tenha safado sempre, de forma mais ou menos velada. Como é evidente, ninguém pensa que as suas acções que levaram aos seus problemas judiciais tenham passado completamente despercebidas junto dos seus camaradas de partido e de governo, até porque se misturaram tragicamente com a economia e a finança, desembocando na pré-bancarrota do país.

De forma “hábil” como a sua acção costuma ser apelidada, o que não me parece um grande elogio a um governante mas adiante, António Costa conseguiu isolar Sócrates escondendo-se atrás da frase “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”. Assim procedendo, o PS nunca reconheceu o lado político grave do caso Sócrates, embora este não tenha surgido do nada, tendo percorrido a carreira partidária do costume, desde a distrital até ao governo, passando pelo Parlamento. Sócrates conseguiu mesmo a primeira maioria absoluta do PS, com muitos votos de alguma direita que apreciou o seu estilo voluntarista e até algo autoritário.


Significando o sucesso desta atitude, António Costa conseguiu governar durante oito anos, ainda que tenha levado para os seus governos boa parte dos que tinham estado nos governos de Sócrates, quer governantes, quer colaboradores directos. Em consequência, os êxitos políticos foram tapando muito do que se passava nos subterrâneos da acção governativa, tendo agora surgido à superfície de forma escandalosa, pela mão da Justiça. Como geralmente sucede. E António Costa, depois do êxitos políticos pessoais lá teve que se demitir e sair pela porta pequena, ao contrário do que muito justamente poderia ter sonhado.

E o país, como fica com tudo o que está a acontecer? Em primeiro lugar passa por uma imagem internacional desgraçada que só nos pode envergonhar colectivamente. Como pude verificar directamente, os noticiários estrangeiros deram a notícia como “primeiro-ministro de Portugal demite-se envolvido em caso de corrupção”. Assim mesmo. Relativamente aos ministros envolvidos e ainda ao chefe do gabinete do PM que escondia dezenas de milhares de euros no seu gabinete no Palacete de São Bento que é a residência oficial do Primeiro-Ministro de Portugal (vergonha maior será difícil), o Ministério Público eventualmente deverá ter elementos suficientes para deduzir as suas acusações de prevaricação, tráfico de influências ou mesmo de corrupção.

Já relativamente ao processo que envolve António Costa e que decorre no Supremo Tribunal de Justiça, a sensação generalizada é que poderá, ou não, evoluir para acusação. De qualquer forma, chegou-se a uma situação que se costuma designar como “lose-lose”, em que cada uma das saídas é tão má como a outra. Em caso de arquivamento, o país teve uma crise que levou a eleições antecipadas com todos custos que isso implica, a nível político, económico e social deixando o Ministério Público em maus lençóis por ter envolvido o Primeiro-Ministro sem bases reais para o fazer. Caso haja acusação, é todo o país que sofre por ver mais um ex-Primeiro Ministro nos tribunais por questões ligadas a corrupção, mais parecendo uma sina nacional.

O que nos poderá levar a pensar se tal não estará ligado à surpreendente descoberta recente de que existe um carimbo genético exclusivamente português que nos dá características únicas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Novembro de 2023

Imagens retiradas da internet