O
Euro foi criado à imagem e semelhança do antigo Marco alemão: ou era assim, ou
a Alemanha não entrava na moeda única. Segundo muitos, radica aqui a origem de
muitos dos nossos males de hoje. Acredito que haja alguma razão nisso, embora
não explique tudo. De facto, a Alemanha tem um passado histórico difícil de
gerir, desde as grandes guerras a que deu origem, até ao conturbado processo de
integração da ex-Alemanha Oriental. Daí advém uma extrema ortodoxia na sua
organização interna, em particular na gestão das contas públicas: são ainda
demasiado frescas as consequências dos desvarios dos primeiros decénios do
século XX alemão e existe um autêntico pavor de inflação elevada.
Tudo
isto era conhecido aquando da criação da moeda única europeia. E, apesar disso,
os dirigentes europeus, nacionais e comunitários, deixaram-se levar pela doce
ilusão das baixas taxas de juro e da conversa sobre o orgulho de terem uma
moeda forte. Andaram anos a deixar acumular dívida, a gastar e criar défices
excessivos e a discutir autênticas aberrações como a decantada “estratégia de
Lisboa”, a “Constituição Europeia” e assuntos do género, para não falar da
regulação do tamanho da banana, das condições das gaiolas das galinhas, etc.
Por
discutir e por aplicar a sério ficaram assuntos verdadeiramente importantes
como o aprofundamento da federação europeia, absolutamente necessário a partir
do momento em que se adoptou uma moeda comum. Assunto quase tabu, para não
ferir susceptibilidades nacionalistas, que o próprio nome assusta muita gente.
Isto depois de se terem transferido para a União algumas das principais
soberanias nacionais. O resultado foi que ficou toda a gente de mãos atadas. Os
diversos países do Euro, porque entregaram a política cambial e definição de
taxas de juro à União; esta, porque os países continuaram com as suas políticas
orçamentais e fiscais próprias. A Europa continua a ser uma grande potência
económica, mas porta-se como alguém que na guerra possui uma arma poderosa, mas
com o gatilho atado com um cadeado, sem a chave para o abrir.
Num
mundo em que a globalização veio alterar todo o funcionamento económico e
financeiro, a Europa tem-se portado como um autêntico “pato sentado”, ficando à
mercê das consequências da desregulação dos fluxos financeiros, das tecnologias
de informação, dos proteccionismos de muitos países outrora classificados como
emergentes mas que são hoje “players” cada vez mais importantes como a China e
o Brasil. Refém, acima de tudo, dos seus próprios fantasmas e de políticos sem
capacidade para lidar com problemas novos, desconhecidos até dos estudiosos de
economia que tateiam no escuro, acenando com fórmulas e respostas de outras
épocas e outros mundos que não são os nossos de hoje
É
neste contexto que Ângela Merkel age como se o Euro fosse acabar amanhã e
tivesse de voltar ao antigo Marco, defendendo-se e fechando-se nas antigas
políticas de segurança orçamental e anti inflacionista. Por isso exige a todos
os outros “austeridade e reformas estruturais”, negando-se a considerar a
hipótese de alterar o “pacto orçamental” com vista a partilhar os custos das
dívidas e de défices dos outros países. Claro que estes têm todas as culpas do
mundo sobre a situação em que se encontram, pelo descontrole das suas contas.
Mas hoje torna-se evidente que a Alemanha está já a lucrar com os problemas dos
outros. Numa altura em que a inflação anda acima dos 2,5%, a Alemanha coloca
dívida pública a dez anos à taxa de 1,7%. Os fluxos do dinheiro europeu estão
apenas com um sentido, ainda que a perder juros e que é o de ir para a
segurança da Alemanha.
A
injustiça de ser a Alemanha a pagar pelos disparates dos outros está-se a
transformar numa injustiça inversa, que é a dos aflitos pagarem o bem-estar
alemão, o que muda tudo. E mais uma vez convém ter uma visão histórica das
coisas. A própria Alemanha que hoje é governada por tantos políticos crescidos
na Alemanha de Leste se deve lembrar das dificuldades da integração alemã que
se seguiu à queda do Muro de Berlim, tendo sido ajudada pelo resto da Europa,
isto para não ir mais longe. E que a participação numa União exige cedências de
todos para o Bem Comum, levando quase sempre a arrogância e o isolacionismo a
maus caminhos de grande dor e sofrimento de todos, incluindo os que se acham
donos da razão.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Maio de 2012
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