Quem algum dia teve aulas no “Edifício das Matemáticas”,
terá eventualmente uma vaga lembrança dos frescos que decoram as paredes
laterais do átrio de entrada. Recordar-se-à, talvez, que são bonitos e
diferentes e têm relação com as ciências exactas – as mais exactas de todas –
que lá se ensinam e investigam, mas provavelmente pouco mais. Os conimbricenses
em geral também saberão só isso ou, eventualmente, ainda um pouco menos.
E no entanto, aqueles frescos são obras de arte a
conhecer. Não só pela beleza e significado artístico e cultural, mas porque são
as únicas obras daquela dimensão existentes em Coimbra, da autoria de Almada
Negreiros.
Passam este ano 120 anos sobre o nascimento da figura
ímpar da Cultura portuguesa do século XX, que um dia escreveu ser Portugal “A
Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”.
Almada foi um artista multifacetado, tendo colaborado logo em 1915 no primeiro
número da revista “Orpheu” e o seu modernismo ainda hoje surpreende pela
irreverência iconoclasta, tendo assumido desde cedo a bandeira do futurismo com
Santa Rita Pintor.
Revoltando-se
contra o cinzentismo da literatura portuguesa e a decadência passadista da
cultura nacional em geral, Almada fez de Júlio Dantas o seu alvo e escreveu o
famoso “Manifesto Anti-Dantas” que muitos contemporâneos nossos deveriam ler
para fugirem do bolor mal cheiroso de algum academismo que ainda hoje para aí
anda, por vezes a coberto se um pseudo modernismo de pacotilha e, na realidade,
velho, muito velho. No entanto, Dantas foi para Almada apenas o símbolo daquilo
que era preciso mudar com urgência, uma sociedade tradicionalista, um país que
já então precisava da “Invenção do Dia Claro”: “Basta pum basta!!! Uma geração que consente deixar-se representar por um
Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de
cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!”
Almada caminhou sempre na vanguarda, desde o ballet (depois
de assistir às representações dos Ballets Russes de Diaghilev) à pintura,
passando pela literatura. São suas as decorações a fresco das Gares Marítimas
de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como o painel “Começar” da
entrada da Fundação Calouste Gulbenkian. O seu auto-retrato de 1943 e o retrato
de Fernando Pessoa para o restaurante Irmãos Unidos, antigo ponto de encontro
do grupo do Orpheu são justamente famosos e icónicos da pintura portuguesa do
século XX.
Neste mês de Novembro, integrado nas comemorações dos 120
anos do seu nascimento, decorreu em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, o Colóquio
Internacional Almada Negreiros. As comemorações incluíram ainda tertúlias,
exposições e visitas guiadas. Tudo em Lisboa, claro, como é de uso.
O leitor, se quiser dar-se a esse trabalho, vá ver por si
os frescos da entrada do Departamento de Matemática da FCTUC da Universidade de
Coimbra, que não perderá o seu tempo Os frescos de Almada estão lá a cumprir a
sua função, não num museu, mas no local para que foram criados. Um deles é
dedicado à “Matemática portuguesa ao serviço da epopeia nacional” e o outro
representa as principais figuras de “A Matemática desde os Caldeus e Egípcios
até aos nossos dias” que, curiosamente, não esquece o “encontro com os árabes
na península”.
Sobre a sua arte passou já o crivo do tempo, único que
atesta a qualidade e importância artística de um autor. Nos dias de hoje, não
há uma arte moderna, porque coexistem todas as correntes. É por isso
surpreendente que ainda hoje as manifestações artísticas de Almada Negreiros
surjam associadas à palavra “moderno” e que muitas das suas provocações ainda
choquem tantos espíritos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Novembro de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário