A queda do muro de Berlim varreu o regime comunista para
as estantes da História, mas desengane-se quem pensou que a bipolarização dos
tempos da guerra fria tinha terminado para sempre, com o estabelecer definitivo
do império americano. Nem, como se sabe, os impérios da História duram para
sempre nem as notícias sobre o desaparecimento da Rússia juntamente com a
ex-URSS deixaram de ser manifestamente exageradas. Claro que a fraqueza súbita
no centro do antigo império soviético permitiu a separação e independência de
países que foram anexados na formação da ex-URSS em 1922 e após a II Guerra
Mundial, neste caso os que na prática estavam ocupados pelos exércitos
soviéticos desde a sua marcha para ocidente no combate à Alemanha hitleriana,
construindo aquilo a que Churchill chamou “Cortina de Ferro”.
Os anos de governação de Boris Yeltsin e da
reestruturação da organização interna russa significaram um apagamento do papel
da Rússia no contexto mundial. Mas o novo regime acabou por se definir dentro
da lógica de economia de mercado, embora com uma grande intervenção do Estado.
Há aspectos da Rússia que na realidade não mudam muito, estejam os antigos
czares no poder, os comunistas ou agora o actual regime e um deles é a desmesurada
capacidade interventiva do Kremlin em todos os aspectos da vida do país, seja
na política, seja na economia. Como se trata de um país de grandes dimensões e
com populações de diversas origens e histórias, uma certa visão que podemos
considerar imperialista não está também nunca muito afastada das práticas
governativas do Kremlin. Essa visão abrange ainda uma vontade de influenciar
definitivamente os países que se situam junto às suas fronteiras,
principalmente na zona ocidental. Acresce que, durante a existência da União
Soviética o poder moscovita considerou os países anexados à União como
pertencendo-lhe para sempre, pelo que por eles foi distribuindo infraestruturas
diversas, incluindo estruturas militares e ainda fábricas de equipamento militar.
Tudo isto explicará boa parte da acção de Putin nos dias
de hoje, mas não lhe dá razão em tudo ou mesmo em grande parte do que se passa
hoje na Ucrânia, ainda que a inclusão do “celeiro da Europa” na ex-URSS viesse
já dos anos 20 do século XX. De facto, a inclusão da Crimeia na Federação Russa
em Maio do corrente ano fez-se à margem de todos os tratados internacionais
assinados pela própria Rússia em 1991. A Ucrânia que, lembre-se, é o país
totalmente europeu com maior dimensão territorial, aprendeu à sua custa que não
podia contar com ajuda da União Europeia ou mesmo dos Estados Unidos, para além
de votações das Nações Unidas ou uns comunicados piedosos mas inócuos a
condenar a acção militar de Putin na Crimeia. Putin vive e governa com toda a
confiança no novo sistema de tipo capitalista da Federação Russa, mas não sendo
comunista nem lá perto, não prescinde de deixar bem claro que não apreciou nada
o que Mikhail Gorbachev acabou por fazer à ex-URSS com a sua “glasnost” que,
juntamente com a famosa “perestroika” acabou não por reestruturar a União
Soviética mas por a destruir por dentro ao libertar todas as tensões acumuladas
e sustidas com mão de ferro pelo Partido Comunista desde os tempos de Lenin.
Após a anexação da Crimeia, Putin avançou com técnicas de
subversão no leste da própria Ucrânia, apoiando sectores que defendem a
separação de parcelas do território da Ucrânia e da sua integração na Federação
Russa. Desta vez o governo de Kiev reagiu militarmente e avançou com tropas
para reocupar aquele território, até agora com relativo êxito, dado que a área
dominada pelos separatistas é já muito reduzida. Com a previsível derrota
militar dos separatistas, chegou-se a um ponto em que a diplomacia tem que
intervir, sob pena de as consequências desta guerra europeia, dado que se trata
efectivamente de uma guerra, poder alastrar com consequências imprevisíveis,
que necessariamente surgiriam no caso de uma intervenção militar russa directa
no território da Ucrânia.
Pelo menos por uma vez, a União Europeia tem que se
mostrar à altura da exigência do momento e não deixar pendurado um país europeu
que pretende ter relações privilegiadas com ela, mostrando-se firme perante a
atitude da Federação Russa, mas tendo em conta a História da região; a Ucrânia
deve continuar una, mas com soluções próprias e democráticas para as pequenas
zonas em que a população é maioritariamente pró-russa. Por seu lado, Putin deve
compreender que o respeito pelos tratados internacionais e pela soberania dos
países limítrofes é a única garantia de respeito da comunidade internacional e
que garante à Federação Russa o papel importante que deve ter no equilíbrio
europeu e mundial. O regresso a uma situação de guerra fria é mau para todos e
seria um passo atrás no desenvolvimento económico e na liberdade no mundo.
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