Metade do país ficou muito
escandalizada com a prestação do Sr. José Manuel Berardo numa comissão na
Assembleia da República. A outra metade diz-se chocada e pede mesmo que lhe
sejam retiradas as condecorações que em tempos os presidentes da República
Ramalho Eanes e Jorge Sampaio lhe atribuíram.
Na realidade, o Sr. José
Manuel Berardo é aqui apenas a ponta visível de um iceberg, que se tornou
demasiado visível na comissão parlamentar de inquérito à gestão da
Caixa Geral de Depósitos. Seja pela personalidade própria do senhor, seja
porque está à vontade para se portar como bem quiser, seja onde for, mesmo na
casa da Democracia por entender que tem os políticos na mão, percebe-se que o
chocante para grande parte da classe política foi a forma da participação,
quando o que verdadeiramente importa é o seu conteúdo.
E o conteúdo,
verdadeiramente, não é novidade para ninguém. Trata-se de mostrar o ambiente
político-económico que dominou Portugal sensivelmente entre os anos 2005 e 2011
com dois pólos situados, respectivamente, na presidência do Conselho de
Ministros e na sede do BES. Estes dois pólos estavam, aliás, tão ligados entre
si que até um ministro, no caso o da Economia (et pour cause,,,) ganharia em
simultâneo pelos dois lados, pelo menos até desrespeitar a Assembleia da
República (em plenário) ao fazer corninhos a um Deputado e assim perdoando, no
desrespeito, todos os Berardos que se lhe seguissem.
Os casos e as personagens
ligadas a tudo o que se passou nesse tempo são tantos, que a dificuldade é a da
escolha, dentro das linhas disponíveis.
A OPA sobre a PT lançada
pela SONAE em 2006 foi a primeira grande batalha que à primeira vista seria
financeira numa pura base de capitalismo mas que, na realidade, constituiu uma
defesa de um certo “capitalismo de estado” perante o perigo de fuga de poder.
Aqui se juntaram Salgado, Bava e Granadeiro à Caixa e a Sócrates numa dita
“luta contra a destruição da PT”, numa conjugação de interesses que, em grande
parte, constituem hoje o cerne da “Operação Marquês”. Berardo saiu da AG que
ditou o fim da OPA a ser aplaudido pelos trabalhadores da empresa como herói.
Tudo o que se seguiu foi mau demais para ser verdade, com a venda da VIVO à
cabeça.
É hoje pacífico ter havido
uma verdadeira tomada de poder dentro do maior banco privado português, o BCP.
Essa operação foi meticulosamente preparada, havendo fundadas suspeitas de
participação do próprio Banco de Portugal no complot. Vários investidores foram
“convidados” pela CGD a tomarem posições accionistas relevantes naquele banco,
com financiamento para a operação dado pela Caixa a 100%, tendo como garantia
apenas as próprias acções compradas. No caso do Sr. José Manuel Berardo, o
dinheiro emprestado pela Caixa foram cerca de 400 milhões de Euros, a que se
juntaram mais quase 600 milhões do BES e do próprio BCP. Depois disto, aquelas
acções do BCP passaram a valer pouco mais de 100 milhões, assim se percebendo o
actual sentimento do Sr. Berardo sobre a operação. Entretanto, os
administradores da CGD Santos Ferreira e Armando Vara que lhe tinha emprestado
o dinheiro tinham-se passado para a administração do BCP, vá lá saber-se por
que artes do demónio
O que verdadeiramente
importa é que tudo isto se saldou numa perda de valor para a economia portuguesa
como não há memória desde as nacionalizações do 11 de Março de 75 e que os
portugueses pagam com os seus impostos. A empresa portuguesa mais valiosa, que
era a PT, desapareceu, a Cimpor está nas mãos de um fundo das forças armadas
turcas depois de ter andado pela célebre Camargo brasileira, o BCP passou por
uma crise que quase o fez desaparecer, o grupo GES/BES desapareceu, a ONGOING
implodiu, etc. etc. etc.
O Sr. José Manuel Berardo
foi apenas um peão no meio de todo um conjunto de golpes palacianos que, ao
tirar a sua fatia do bolo, em vez de ficar com a prenda das mais-valias do
dinheiro que lhe meteram nas mãos, ficou apenas com a fava das dívidas do quase
completo desaparecimento do valor das acções que o financiaram para comprar. É
por isso que esta crónica não é sobre ele, que foi apenas o espertalhão a quem
desta vez correu tudo mal e que anda apenas a tentar safar o que é seu, da
maneira que sabe.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Maio 2019
Sem comentários:
Enviar um comentário