Caxemira (ou
pashmina) não é apenas o nome de uma lã que aquece, embora seja muito leve e
confortável. E muito cara, também. Curiosamente, essa lã vem, não da região de
Caxemira no subcontinente indiano, mas de ovelhas que vivem nos Himalaias, no
Nepal, na Mongólia e na China e que desenvolveram um pêlo que as protege das
temperaturas baixíssimas das montanhas. Historicamente essas lãs, de uma
qualidade extraordinária, eram posteriormente tratadas pelos tecelões de Caxemira,
seguindo depois para a Europa.
O vale de Caxemira,
com 7 milhões de habitantes, é a jóia do Estado da Caxemira que ficou dividido
entre a Índia e o Paquistão, após a saída dos britânicos em 1947. O Vale ficou
integrado na zona indiana, apesar de a sua população ser maioritariamente
muçulmana e não hindu. Pela sua localização entre as montanhas do Caracórum, do
Pir Panjal e a cordilheira do Zanskar, o Vale de Caxemira goza de um clima
ameno que contrasta com o território que o rodeia. É de uma grande beleza
natural, atraindo turistas de todo o mundo claro, quando não está em estado de
guerra ou pré-guerra, como acontece nos dias de hoje.
Como tantas vezes sucedeu
após a queda dos impérios coloniais, aqueles novos países tiveram as suas
fronteiras traçadas a régua e esquadro, cortando antigas comunidades, com o
problema suplementar de o Paquistão ter ficado dividido em duas parcelas
separadas por mais de 2.000 km, a oriente e a ocidente da península, com a
Índia no meio. Não foi preciso esperar muito para que a Índia e o Paquistão
tivessem conflitos fronteiriços.
Embora tivessem
partido de uma base comum, o império britânico, a Índia e o Paquistão vieram a
desenvolver sistemas políticos muito diferentes. A Índia, com excepção de um
breve período, evoluiu para uma democracia que, embora vista do exterior possa
parecer um pouco confusa devido fundamentalmente à estratificação social, tem
sido relativamente estável. A maior democracia do mundo, como por vezes é
chamada conseguiu, fundamentalmente, submeter as suas forças armadas ao poder
civil. Já o Paquistão evoluiu de forma inteiramente diferente. Devido à
proximidade do Afeganistão, as forças armadas anteriores à independência
ficaram, em grande parte, localizadas no Paquistão ocidental. Não demorou muito
até os generais paquistaneses tomarem conta do poder, o que aconteceu em 1958,
e iniciarem ataques de guerrilha em Caxemira logo em 1965, iniciando uma guerra
que durou algumas semanas até se conseguir a paz. E, em 1971, foi a vez de os
indianos apoiarem os independentistas da zona oriental do Paquistão, a que se
seguiu uma repressão brutal pelos exércitos paquistaneses. A violenta guerra
que se seguiu ditou a independência do Bangladesh, após o exército indiano ter
derrotado os paquistaneses e terem morrido mais de meio milhão de civis do
Bangladesh. Depois desta debacle militar, o General Zia ul-Haq dirigiu em 1977 um
golpe de estado que recolocou os militares no poder com o apoio dos americanos
e da Arábia Saudita, coincidindo com a invasão soviética do Afeganistão. O Gen.
Zia morreu num acidente de avião em 1988, ano de saída da URSS do Afeganistão.
O poder é hoje formalmente civil, mas os militares têm ainda um poder enorme.
O Paquistão nunca
deixou de considerar que a Caxemira lhe foi retirada aquando da independência.
Os seus habitantes sentem também que não pertencem à Índia, embora as suas
condições de vida sejam bem melhores do que as dos paquistaneses, em geral.
Face a este sentimento, o governo indiano retirou, há poucas semanas, a autonomia
a Caxemira, para evitar manifestações. Em consequência as forças policiais
indianas prenderam milhares de pessoas nos últimos dias na zona indiana de
Caxemira, enquanto o Paquistão acusa o lado indiano de ter morto vários
paquistaneses, o que é negado pela Índia.
Quer a Índia, quer
o Paquistão, são potências nucleares possuindo ainda mísseis modernos que
permitiriam ataques às principais cidades de ambos os países em poucos minutos.
O actual primeiro-Ministro indiano tem levado o seu país a entrar por caminhos
nacionalistas e mais autoritários. A sua actuação recente em Caxemira não
augura um futuro pacífico para aquela região, sendo necessário e urgente que as
Nações Unidas tenham um papel rápido e eficaz que evite o pior.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Setembro 2019
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