segunda-feira, 16 de setembro de 2019

CAXEMIRA


Caxemira (ou pashmina) não é apenas o nome de uma lã que aquece, embora seja muito leve e confortável. E muito cara, também. Curiosamente, essa lã vem, não da região de Caxemira no subcontinente indiano, mas de ovelhas que vivem nos Himalaias, no Nepal, na Mongólia e na China e que desenvolveram um pêlo que as protege das temperaturas baixíssimas das montanhas. Historicamente essas lãs, de uma qualidade extraordinária, eram posteriormente tratadas pelos tecelões de Caxemira, seguindo depois para a Europa.
O vale de Caxemira, com 7 milhões de habitantes, é a jóia do Estado da Caxemira que ficou dividido entre a Índia e o Paquistão, após a saída dos britânicos em 1947. O Vale ficou integrado na zona indiana, apesar de a sua população ser maioritariamente muçulmana e não hindu. Pela sua localização entre as montanhas do Caracórum, do Pir Panjal e a cordilheira do Zanskar, o Vale de Caxemira goza de um clima ameno que contrasta com o território que o rodeia. É de uma grande beleza natural, atraindo turistas de todo o mundo claro, quando não está em estado de guerra ou pré-guerra, como acontece nos dias de hoje.
Como tantas vezes sucedeu após a queda dos impérios coloniais, aqueles novos países tiveram as suas fronteiras traçadas a régua e esquadro, cortando antigas comunidades, com o problema suplementar de o Paquistão ter ficado dividido em duas parcelas separadas por mais de 2.000 km, a oriente e a ocidente da península, com a Índia no meio. Não foi preciso esperar muito para que a Índia e o Paquistão tivessem conflitos fronteiriços.

Embora tivessem partido de uma base comum, o império britânico, a Índia e o Paquistão vieram a desenvolver sistemas políticos muito diferentes. A Índia, com excepção de um breve período, evoluiu para uma democracia que, embora vista do exterior possa parecer um pouco confusa devido fundamentalmente à estratificação social, tem sido relativamente estável. A maior democracia do mundo, como por vezes é chamada conseguiu, fundamentalmente, submeter as suas forças armadas ao poder civil. Já o Paquistão evoluiu de forma inteiramente diferente. Devido à proximidade do Afeganistão, as forças armadas anteriores à independência ficaram, em grande parte, localizadas no Paquistão ocidental. Não demorou muito até os generais paquistaneses tomarem conta do poder, o que aconteceu em 1958, e iniciarem ataques de guerrilha em Caxemira logo em 1965, iniciando uma guerra que durou algumas semanas até se conseguir a paz. E, em 1971, foi a vez de os indianos apoiarem os independentistas da zona oriental do Paquistão, a que se seguiu uma repressão brutal pelos exércitos paquistaneses. A violenta guerra que se seguiu ditou a independência do Bangladesh, após o exército indiano ter derrotado os paquistaneses e terem morrido mais de meio milhão de civis do Bangladesh. Depois desta debacle militar, o General Zia ul-Haq dirigiu em 1977 um golpe de estado que recolocou os militares no poder com o apoio dos americanos e da Arábia Saudita, coincidindo com a invasão soviética do Afeganistão. O Gen. Zia morreu num acidente de avião em 1988, ano de saída da URSS do Afeganistão. O poder é hoje formalmente civil, mas os militares têm ainda um poder enorme.
O Paquistão nunca deixou de considerar que a Caxemira lhe foi retirada aquando da independência. Os seus habitantes sentem também que não pertencem à Índia, embora as suas condições de vida sejam bem melhores do que as dos paquistaneses, em geral. Face a este sentimento, o governo indiano retirou, há poucas semanas, a autonomia a Caxemira, para evitar manifestações. Em consequência as forças policiais indianas prenderam milhares de pessoas nos últimos dias na zona indiana de Caxemira, enquanto o Paquistão acusa o lado indiano de ter morto vários paquistaneses, o que é negado pela Índia.
Quer a Índia, quer o Paquistão, são potências nucleares possuindo ainda mísseis modernos que permitiriam ataques às principais cidades de ambos os países em poucos minutos. O actual primeiro-Ministro indiano tem levado o seu país a entrar por caminhos nacionalistas e mais autoritários. A sua actuação recente em Caxemira não augura um futuro pacífico para aquela região, sendo necessário e urgente que as Nações Unidas tenham um papel rápido e eficaz que evite o pior.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Setembro 2019

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