Porventura, já pouca gente se lembrará de uma questão que
encheu os cabeçalhos dos jornais e os telejornais há bem poucas semanas. De
facto, as agendas políticas construídas para despistar os cidadãos incautos
servem para isso mesmo: inundar os media permanentemente com notícias
bombásticas, de preferência escabrosas, cujo fim último é o de provocar
escândalos e correspondentes gritarias de indignação (gatunos, são todos
iguais!) adormecendo consciências e afastando o interesse das pessoas da coisa
comum. A história do Pedro e do lobo é bem conhecida, pelo que se tornam
dispensáveis mais comentários sobre o assunto, a não ser que num dia destes o
ovo da serpente abre-se mesmo e ninguém dará conta disso.
O título desta crónica recupera o comentário de um político
socialista com grande notoriedade, logo também responsabilidades
correspondentes, sobre uma auditoria do Tribunal de Contas que se debruçou
sobre a venda de património imobiliário da Segurança Social à Câmara Municipal
de Lisboa.
A justificação para essa venda deu-a o presidente da Câmara
Municipal de Lisboa, sendo os imóveis em causa destinados a concretizar as suas
políticas de habitação social para o Município de Lisboa.
A primeira questão que se levanta com este negócio tem a ver
com a natureza da entidade pública que vendeu o património e quais os fins a
que se destina. De facto, deve o Instituto de Gestão Financeira da Segurança
Social, ao alienar património, procurar que a receita, que reverte obrigatoriamente
para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, seja a mais
elevada possível. O facto de os trabalhadores e empresas de todo o país
descontarem dos seus vencimentos para a Segurança Social tendo em vista
garantir as verbas necessárias para as prestações sociais, designadamente as
pensões dos reformados, exige o máximo rigor e cuidado na gestão desses
activos, principalmente num tempo em que a sustentabilidade da Segurança Social
é um problema nacional.
Entre os objectivos da Segurança Social não consta o
apoio à prossecução de uma política habitacional, ainda que nacional, e muito
menos de uma determinada Autarquia, mesmo que seja a capital do país, o que se
traduz, de imediato, num tratamento de favor em prejuízo das restantes
trezentas e tal autarquias.
Por outro lado, o Tribunal de Contas verificou que a venda dos
11 imóveis ficou 3,5 milhões abaixo das avaliações. Para além das próprias
avaliações que não terão sido feitas por entidades externas e sim pelo
comprador e pelo vendedor, a diferença no valor traduz um frete da Segurança
Social à Câmara Municipal de Lisboa.
Tudo isto cheira, a léguas, a compadrio político e política da
mais rasteira que pode haver, ainda por cima à custa da sustentabilidade da
Segurança Social e já seria suficiente mau se tivesse ficado por aqui. Mas não.
Perante a denúncia do Tribunal de Contas que, note-se, é um Tribunal, as
reacções foram demonstrativas de uma arrogância e demonstração de “quero, posso
e mando” inaceitáveis num regime que se quer democrático.
O presidente da Câmara Fernando Medina reagiu de forma violenta
e mesmo algo descontrolada, com acusações ao Tribunal de Contas de estar a
«fazer política», de lhe fazer perseguição política e mesmo de “fazer
relatórios de baixíssima qualidade técnica”. As reacções chegaram ao ponto de o
tal deputado socialista ter escrito na internet: "O relatório do Tribunal
de Contas sobre o negócio entre a Câmara de Lisboa e a Segurança Social deve
ter sido escrito por mentecaptos, lido por mentecaptos e sancionado por
mentecaptos…”. Fica provado que a linguagem própria das discussões
futebolísticas das televisões invadiu já a política, para o pior.
Depois disto, o Governo encontrou uma solução à medida para
resolver este e outros problemas semelhantes no futuro: retirar competências ao
Tribunal de Contas e acrescentar camadas de obscuridade à já pouco transparente
política governativa. Assim, no Orçamento Geral do Estado para 2020, o Governo
isentou de visto prévio do TdC "os contratos e demais instrumentos
jurídicos que tenham por objeto a prestação de serviços de elaboração e revisão
de projeto, fiscalização de obra, empreitada ou concessão destinada à promoção
de habitação acessível ou pública ou alojamento estudantil”. A isto
acrescentou-se ainda «as reabilitações e aquisições de imóveis».
Pode haver quem ache tudo isto muito bem e está no seu direito.
Contudo, direito ainda maior é o de todos sabermos o que se passa com
transparência, de que forma são executadas as políticas e como são utilizados
os dinheiros que não são do governo nem de um presidente de câmara e sim dos
portugueses que pagam isto tudo com os seus impostos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2020
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