segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

«O TRIBUNAL DE CONTAS DE MENTECAPTOS»


Porventura, já pouca gente se lembrará de uma questão que encheu os cabeçalhos dos jornais e os telejornais há bem poucas semanas. De facto, as agendas políticas construídas para despistar os cidadãos incautos servem para isso mesmo: inundar os media permanentemente com notícias bombásticas, de preferência escabrosas, cujo fim último é o de provocar escândalos e correspondentes gritarias de indignação (gatunos, são todos iguais!) adormecendo consciências e afastando o interesse das pessoas da coisa comum. A história do Pedro e do lobo é bem conhecida, pelo que se tornam dispensáveis mais comentários sobre o assunto, a não ser que num dia destes o ovo da serpente abre-se mesmo e ninguém dará conta disso.
O título desta crónica recupera o comentário de um político socialista com grande notoriedade, logo também responsabilidades correspondentes, sobre uma auditoria do Tribunal de Contas que se debruçou sobre a venda de património imobiliário da Segurança Social à Câmara Municipal de Lisboa.
A justificação para essa venda deu-a o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, sendo os imóveis em causa destinados a concretizar as suas políticas de habitação social para o Município de Lisboa.
A primeira questão que se levanta com este negócio tem a ver com a natureza da entidade pública que vendeu o património e quais os fins a que se destina. De facto, deve o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, ao alienar património, procurar que a receita, que reverte obrigatoriamente para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, seja a mais elevada possível. O facto de os trabalhadores e empresas de todo o país descontarem dos seus vencimentos para a Segurança Social tendo em vista garantir as verbas necessárias para as prestações sociais, designadamente as pensões dos reformados, exige o máximo rigor e cuidado na gestão desses activos, principalmente num tempo em que a sustentabilidade da Segurança Social é um problema nacional. 
Entre os objectivos da Segurança Social não consta o apoio à prossecução de uma política habitacional, ainda que nacional, e muito menos de uma determinada Autarquia, mesmo que seja a capital do país, o que se traduz, de imediato, num tratamento de favor em prejuízo das restantes trezentas e tal autarquias.
Por outro lado, o Tribunal de Contas verificou que a venda dos 11 imóveis ficou 3,5 milhões abaixo das avaliações. Para além das próprias avaliações que não terão sido feitas por entidades externas e sim pelo comprador e pelo vendedor, a diferença no valor traduz um frete da Segurança Social à Câmara Municipal de Lisboa.
Tudo isto cheira, a léguas, a compadrio político e política da mais rasteira que pode haver, ainda por cima à custa da sustentabilidade da Segurança Social e já seria suficiente mau se tivesse ficado por aqui. Mas não. Perante a denúncia do Tribunal de Contas que, note-se, é um Tribunal, as reacções foram demonstrativas de uma arrogância e demonstração de “quero, posso e mando” inaceitáveis num regime que se quer democrático.
O presidente da Câmara Fernando Medina reagiu de forma violenta e mesmo algo descontrolada, com acusações ao Tribunal de Contas de estar a «fazer política», de lhe fazer perseguição política e mesmo de “fazer relatórios de baixíssima qualidade técnica”. As reacções chegaram ao ponto de o tal deputado socialista ter escrito na internet: "O relatório do Tribunal de Contas sobre o negócio entre a Câmara de Lisboa e a Segurança Social deve ter sido escrito por mentecaptos, lido por mentecaptos e sancionado por mentecaptos…”. Fica provado que a linguagem própria das discussões futebolísticas das televisões invadiu já a política, para o pior.
Depois disto, o Governo encontrou uma solução à medida para resolver este e outros problemas semelhantes no futuro: retirar competências ao Tribunal de Contas e acrescentar camadas de obscuridade à já pouco transparente política governativa. Assim, no Orçamento Geral do Estado para 2020, o Governo isentou de visto prévio do TdC "os contratos e demais instrumentos jurídicos que tenham por objeto a prestação de serviços de elaboração e revisão de projeto, fiscalização de obra, empreitada ou concessão destinada à promoção de habitação acessível ou pública ou alojamento estudantil”. A isto acrescentou-se ainda «as reabilitações e aquisições de imóveis».
Pode haver quem ache tudo isto muito bem e está no seu direito. Contudo, direito ainda maior é o de todos sabermos o que se passa com transparência, de que forma são executadas as políticas e como são utilizados os dinheiros que não são do governo nem de um presidente de câmara e sim dos portugueses que pagam isto tudo com os seus impostos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2020

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