Do gelo acima o seio levantava.
A um gigante igualar eu poderia”
O Portão do Inferno não tem porta, nem fechaduras, nem nada de
especial. Apenas um letreiro que diz: “Deixai toda a esperança, ó vós que
entrais”. A partir daquela porta as almas deixam de ter o livre-arbítrio de que
gozavam na sua vida anterior, passando a assumir apenas o castigo das opções
tomadas. E foi por essa porta que Dante entrou para conhecer o Inferno,
tendo-se-lhe juntado logo à entrada o espírito de Virgílio que o encaminhou pelos
diversos círculos do Inferno.
Como sabemos, no Inferno de Dante, à medida que se vai descendo
nos círculos a gravidade dos pecados vai aumentando e o nono é o último,
portanto o local dos piores pecados: a Traição.
Ao saírem do oitavo círculo, Virgílio e Dante encontram os seis
gigantes que, acorrentados em poços congelados por terem atraiçoado Júpiter,
impedem a passagem ao nono círculo. Um deles, Anteu, ajuda-os a passar ao lago congelado
Cócite,
o nono círculo do Inferno, o fundo do funil dos círculos do Inferno, já perto
do centro da Terra. É lá que estão imersos os que cometeram o pior dos crimes,
a traição, sendo a morada do próprio Lúcifer, o traidor de Deus que nas bocas
das suas três cabeças exibe três grandes traidores: Judas que atraiçoou Cristo,
Brutus e Cássio que traíram imperadores romanos.
Correspondendo à gravidade da traição cometida, os traidores
estão distribuídos por quatro esferas: Caína, Antenora, Ptolomeia e Judeca cujas
designações remetem cada uma para um
traidor famoso.
Das quatro esferas que constituem o nono círculo do inferno, as
duas últimas castigam precisamente os maiores pecadores de todos. O nome da
esfera Ptolomeia remete para Ptolomeu, que convidou Simão e os seus dois filhos
para o seu castelo em Jericó, para os matar traiçoeiramente, depois de lhes dar
de beber em quantidade. As almas dos que penam nesta esfera estão dentro do
gelo, tendo apenas as caras de fora onde as lágrimas se congelam
instantaneamente. São assim eternamente castigadas por traírem os que convidaram
para as suas próprias casas, os seus estabelecimentos, as suas instituições.
Já a última esfera remete para Judas Iscariotes que
historicamente se converteu no próprio nome da traição, Na esfera da Judeca,
são castigados os que atraiçoaram os seus líderes e estão totalmente imersos no
gelo, com a única excepção do próprio Lúcifer metido no gelo até metade do
peito.
Dante Alighieri nasceu em Florença em Maio de 1265 e é a prova
de que, ao contrário do que muitos iluministas séculos mais tarde tentaram
fazer crer, a Idade Média não foi a idade das trevas. Das suas muitas obras
sobressai a “Divina Commedia” considerada uma das obras mais importantes da
literatura universal, pela sua composição mas também pelo seu carácter
eminentemente enigmático e pelo número e carga das alegorias que contém. A
obra, dividida em trinta e quatro cantos, é composta por três partes, sendo o
Inferno precisamente a primeira, e o Purgatório e o Paraíso as outras duas,
sendo que nesta última viagem é guiado pela jovem Beatriz Portinari. A sua
influência na Cultura universal é enorme, tendo suscitado obras dos mais
diversos artistas, desde músicos como Liszt a pintores como Botticelli, De
Chirico, Delacoix e muitos outros.
A leitura desta obra-prima com setecentos anos deveria ser
aconselhada a todos os que, de alguma forma, ascendem a lugares de proeminência
social, económica ou mesmo, quase que diria principalmente por se tratar do
bem-comum, política. Aí aprenderiam como os principais pecados, diremos hoje más-acções
ou crimes, são aqueles que se relacionam com faltas cometidas perante quem
convida para esses lugares, mas também precisamente por quem convida. Algo
muito mais importante do que agir apenas de acordo com as leis do momento. Os
leitores portugueses que queiram conhecer a “Divina Commedia” até têm hoje a
vida facilitada, por disporem de uma recente tradução portuguesa, da autoria de
Vasco Graça Moura.
As alegorias de Dante aplicam-se às sociedades de todos os tempos. Nos
dias de hoje podemos estar a falar de simples empregos em empresas, mas também
dos cargos máximos de administração. Ou de governos em que chefes e
subordinados não se devem atraiçoar reciprocamente, ainda que por omissão,
esquecendo-se que estão num palco cuja plateia é toda a população de um país.
Fariam bem em lembrar-se do gelo do esquecimento das duas últimas esferas do
nono círculo do Inferno de DantePublicado originalmente no Diário de Coimbra de 18 de Maio de 2020
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