Uma visita a uma fábrica de automóveis constitui o cenário mais
improvável para se fazer um anúncio de apoio a uma recandidatura presidencial.
Mas foi o que aconteceu em Portugal, neste ano da (pouca) graça de 2020.
Não é que a recandidatura do actual presidente da República não
fosse algo de que praticamente todo o país tivesse a certeza a começar pelo
próprio, correndo-lhe o actual mandato como correu. Recordo que, no Verão de
2015, numa conferência de Marcelo em Coimbra, lhe perguntei se confirmava a
intenção de se candidatar às presidenciais de Janeiro de 2016, ao que me
respondeu com a sua ironia que era algo em que ainda não tinha pensado até
então, mas que ia pensar nisso, provocando uma gargalhada geral na sala.
Eventualmente, o momento e o local para a indicação da decisão
não terão sido propriamente do agrado do Presidente Marcelo, mas também não
foram da sua escolha e, às vezes, não se pode fugir às circunstâncias. O
«affaire» Centeno foi uma situação muito desagradável para o primeiro-ministro
que, perante uma situação penosa que o colocava em cheque perante o país, viu
Marcelo dar-lhe a mão, enquanto abandonava politicamente o ministro das
Finanças. Foi assim possível ver um Costa todo prazenteiro dizer a Marcelo que
contava voltar a encontrar-se de novo com ele como Presidente no mesmo local,
numa altura que será depois das presidenciais. Como lhe costuma acontecer jogou
bem e, no que lhe diz respeito quanto às presidenciais e como se diz no casino,
«les jeux sont faits».
Claro que esta nova situação tem consequências. À esquerda do
PS deverão aparecer candidaturas às presidenciais, como é tradição. Quanto ao
PCP, apresentou sempre os seus próprios candidatos presidenciais, pelo que
decerto fará o mesmo desta vez. O Bloco de Esquerda desejará fazer o mesmo,
havendo mesmo quem adiante a recandidatura da conimbricense Marisa Matias que
nas anteriores presidenciais obteve um honroso 3º lugar com 10,12% dos votos,
deixando muito para trás o candidato do PCP Edgar Silva que se ficou por uns
míseros 3,95%.
O anúncio do apoio de Costa a Marcelo deixou sem respiração uma
boa parte do PS que muito dificilmente apoiará o actual presidente. Contudo, e
muito convenientemente, o Congresso socialista foi postergado para depois das
eleições presidenciais, pelo que as discussões internas se ficarão a um nível
mais privado e, eventualmente, mais controlado pela direcção do partido.
Espera-se, no entanto, que Ana Gomes ou outra personalidade semelhante capaz de
surfar a onda do populismo «anti sistema» à esquerda se veja alvo de pressões
no sentido de uma candidatura independente da área socialista, podendo mesmo
avançar como Manuel Alegre já fez no passado.
Recorda-se que em 2006 Manuel
Alegre obteve quase 21% contra o vencedor Cavaco Silva (50,54%), tendo Mário
Soares, que era o candidato oficial do PS, obtido apenas 14%. Ana Gomes poderá
fazer melhor, caso o BE não apresente candidatura própria.
À direita, de forma algo surpreendente estabeleceu-se a
confusão, como que a querer provar ser mesmo «a direita mais estúpida do mundo»,
lançando nomes cada um mais implausível que o anterior. É certo que o
Presidente Marcelo não corporizou oposição aos governos Costa, desde 2016,
havendo mesmo muitos momentos em que se pode legitimamente considerar que foi a
mão mais ou menos visível que os segurou. Mas alguém minimamente atento à coisa
pública pode afirmar que os partidos tradicionais à direita do PS têm exercido
oposição forte e susceptível de afirmar uma clara alternativa política, desde a
saída de Passos Coelho da liderança do PSD? Será que estariam à espera que o
presidente da República fizesse esse trabalho por eles? Mais uma vez o PSD vai chegar
atrasado a uma tomada de posição importante, quando já poderia e deveria ter publicamente
afirmado que o seu antigo líder Marcelo é o candidato que, sem quaisquer
dúvidas, irá apoiar de novo. André Ventura tentará levar o voto de uma direita
também «fora do sistema» para o seu nacionalismo populista, mas o resultado
deverá surpreender pela sua irrelevância política.
Claro que Marcelo Rebelo de Sousa pode ter sido irritante para a direita
pela forma como se relacionou com o Governo neste mandato, mas é evidente que
veio dessa área política. Direita que, em vez de saudar grande parte da
esquerda por reconhecer que o seu antigo candidato Marcelo teve um bom mandato
como Presidente a ponto de lhe dar agora o seu apoio, mais parece andar perdida
e ciumenta por causa desse apoio.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Maio de 2020
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