segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Uma crónica que é capicua: 777

 


Um amigo meu que é médico dos corpos e desconfio que, por vezes, ainda que ele próprio o não saiba até de almas, diz que «os números acertam sempre e as crónicas acertam às vezes» e quanto a mim, apesar de não acreditar em bruxas sei, de ciência certa, que as há.

Este «Visto de Dentro» é a 777ª crónica desta série iniciada em Outubro de 2005 e, se algumas vezes terá acertado e outras menos, confio que será certamente desta vez que acerta em pleno, já que os numerologistas ocidentais e orientais coincidem em atribuir ao número 777 qualidades verdadeiramente excepcionais. No número 777 aparecem três algarismos seguidos. O número 7 só por si é considerado o número da perfeição, ligado ao conhecimento e à espiritualidade, estando presente em mitos e religiões ao longo da História por se encontrar ligado à Natureza através de numerosos ciclos como os dias da semana e as fases lunares entre muitos outros e até às notas musicais. O número 777 será, assim, um número especial, indicativo de sucesso ou realização de um sonho pessoal

Mas, para além da procura de significados de índole mais ou menos esotérica, a manipulação de números permitiu, desde tempos imemoriais, a representação de relações presentes na Natureza, mas também na capacidade de construção mental do Homem. O jogo de xadrez, debaixo do aparente caos de movimentos de 32 peças em 64 casas, esconde a construção de estratégias e utilização de tácticas com a mais fria lógica matemática, existe há mais de mil anos, pensando-se que teve origem na Índia. Classicamente representa uma batalha entre dois exércitos, mas mais modernamente não anda muito longe da representação da luta pelo poder entre partidos e até da conquista do mercado por empresas diferentes.


A capacidade de calcular distâncias entre pontos ultrapassando impossibilidades físicas foi trazida pela trigonometria e pela fórmula do triângulo rectângulo descoberta por Pitágoras uns quinhentos anos antes de Cristo: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, algo que todos aprendemos logo no início do Liceu.

Ao dividir-se o perímetro de qualquer círculo pelo seu diâmetro, seja qual for a dimensão do círculo, encontra-se sempre o mesmo valor, conhecido por Pi. As primeiras aproximações do valor de Pi obtiveram-se nas antigas civilizações, tendo os egípcios chegado ao valor de 3,16. O matemático grego Arquimedes calculou o valor de 3,142 e não foi por isso que gritou Eureka, expressão que reservou para outra descoberta também relacionada com números. Hoje em dia sabe-se que o valor de Pi é um número irracional com o valor 3,14159….., portanto uma sequência infinita de dígitos, mas a sua importância do conhecimento de algo matemático tão elementar na nossa vida continua a mesma ou mesmo ainda maior do que nos tempos dos antigos egípcios e babilónicos.

A medição das distâncias percorridas sobre os oceanos foi, durante séculos, um quebra-cabeças para os navegadores dado que, a partir de certa altura souberam como calcular a latitude e muito mais tarde a longitude, mas não sabiam a distância percorrida por um grau à superfície da Terra. Até que um matemático inglês, depois de ter tomado consciência da dificuldade de encontrar umas pequenas ilhas no meio do mar, se deu ao trabalho de o calcular. A partir da Torre de Londres andou a estender um fio muitas vezes até York para calcular esta distância, medindo depois o ângulo do Sol nos dois locais à mesma hora do mesmo dia. O seu cálculo de 110,72 km por grau foi bastante aproximado. O que ele não podia saber então é que a Terra tem menos 43 Km no Equador do que num meridiano, mas a sua obra foi de grande importância para as navegações marítimas.

Além do mais, o número 777 é também uma capicua, o que quer dizer que é idêntico ao ser lido da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda. O termo terá surgido no século XIX em Barcelona, derivando etimologicamente dos termos catalães para cabeça e cauda. As capicuas podem também ser chamadas palíndromos, termo que designa igualmente palavras ou frases com a mesma característica de poderem ser lidas nos dois sentidos. A palavra «Ana» é um exemplo de um palíndromo. Um dos palíndromos mais antigos está em latim: "SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS" (O lavrador diligente conhece a rota do arado").


E é este último palíndromo que tem o condão de me trazer à terra, recuperando assim a rota do meu arado, isto é, a obrigação (ou devoção) de terminar mais esta crónica que, a certa altura, me levou por caminhos insuspeitados, certamente como consequência do seu número estranho. Prova da afirmação inicial de que os números acertam sempre, as crónicas só às vezes.
 
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Outubro de 2020

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