terça-feira, 13 de outubro de 2020

FRA - Revista da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra Set 2020

 

Veja a revista inteira aqui:

https://mail.google.com/mail/u/0?ui=2&ik=ad5510217c&attid=0.1&permmsgid=msg-f:1680346327606099225&th=1751ca150497fd19&view=att&disp=safe&realattid=f_kg6gmcn60

 

O meu artigo neste número:

Tempus fugit

Histórias de relógios

O relógio é um dos instrumentos mais banais do nosso dia-a-dia tendo hoje, com a tecnologia electrónica, uma precisão que está muito para além das nossas necessidades correntes, embora essencial para muitos dos equipamentos modernos como computadores, telemóveis, microscópios electrónicos, leitores de CD e muitos mais. Contudo, existe um mundo mais restrito de relojoaria, que utiliza ainda hoje uma capacidade mecânica de elevada complexidade e precisão que é uma demonstração de engenhosidade humana que ultrapassa o facilmente imaginável.

A capacidade de medição do tempo foi um dos conhecimentos científicos mais importantes e significativos da História da Humanidade que, desde tempos imemoriais, se voltou para o céu na tentativa de encontrar parâmetros que lhe permitisse organizar a sua vida, principalmente quando começou a praticar a agricultura. Se a passagem dos dias sempre pareceu algo de automático e de fácil previsibilidade, já as estações do ano tão importantes para determinar as sementeiras e colheitas eram muito mais difíceis de prever com alguma exactidão.

Sabemos hoje que a duração dos nossos dias é calculada em função da translação da Terra à volta do Sol, que demora 365,242199 dias a fazer-se.

O calendário gregoriano introduzido pelo papa Gregório XIII em 1582 veio substituir o calendário definido por Júlio César e Cleópatra que, por partir de uma duração do ano de 365,25 dias levava já no século XVI um erro de 10 dias inteiros. A adopção dos anos bissextos veio corrigir este erro.

Mas a astronomia é muito mais complicada. Na realidade, a precessão dos equinócios devida ao facto de a Terra girar em torno do seu eixo como um pião leva a que o ano sideral medido em relação às estrelas dure ainda mais 20 minutos e 24 segundos. Só este pormenor deita por terra toda a “capacidade científica” da Maya e demais astrólogos.

Mais interessante ainda é o facto de o dia definido em cima ser o “dia médio”, porque os dias não têm todos a mesma duração. Como a Terra, na sua translação à volta do Sol, segue uma elipse imperfeita, a duração real dos dias varia entre 23 horas 44 minutos em 3 de Novembro e 24 horas e 14 minutos em 11 de Fevereiro, havendo quatro dias por ano com uma duração igual à duração média. A diferença entre estas duas durações chama-se “equação do tempo” e, pasme-se, existem relógios mecânicos de pulso capazes de resolver a equação do tempo no mostrador.

No mundo dos relógios mecânicos existe uma área chamada das «complicações mecânicas» e, no seu topo encontra-se o TURBILHÃO. Esta tecnologia foi inventada em 1801 pela casa BREGUET, num tempo em que os relógios ainda eram fixos, estando permanentemente na posição vertical, portanto sujeitos a que a gravidade terrestre afectasse o movimento do "escape", introduzindo variações indesejáveis com influência negativa na precisão da máquina. O TURBILHÃO consiste numa cápsula móvel que contém o "escape" e o "balanço" que assim rodam em conjunto, efectuando normalmente uma rotação completa em cada minuto, compensando assim as variações. Hoje em dia, os relógios andam nos nossos pulsos, mudando constantemente de posição, pelo que o turbilhão não seria necessário para compensar a gravidade, sendo uma curiosidade e, acima de tudo, um desafio para os construtores. O turbilhão aparece normalmente colocado às 12 horas ou às seis horas, havendo modelos, com o turbilhão no centro dos ponteiros, o que dá aos relógios um aspecto perturbador, pela quase magia do movimento perceptível aos nossos olhos. Há mesmo fabricantes que desenvolveram modelos com um turbilhão esférico, que roda sobre dois eixos, parecendo flutuar livremente no espaço de uma forma absolutamente extraordinária. A micro-engenharia mecânica necessária para fabricar estes dispositivos destinados a trabalhar dentro do reduzido espaço de um relógio de pulso é uma das façanhas mais impressionantes da capacidade inventiva do Homem. O efeito do turbilhão a rodar perante os nossos olhos tem, no entanto, um efeito quase mágico, pelo que as grandes marcas (muito poucas têm a capacidade técnica para produzir esta maravilha de miniaturização) apresentam modelos muito exclusivos, e dispendiosos, com esta função.

Existe uma confusão muito vulgarizada, mesmo entre quem aprecia bons relógios mecânicos. Trata-se de saber a diferença entre cronógrafo e cronómetro. Um cronómetro é actualmente um relógio mecânico que atinge um determinado patamar de precisão, que lhe permite obter um certificado específico passado pelo CSCO (Contrôle Officiel Suisse des Chronomètres) após a realização com sucesso de uma série bem definida de testes. A necessidade desta precisão nasceu na navegação marítima, para se calcular a longitude. Ainda me lembro de, a bordo dos navios da Armada de Guerra, haver sempre um cronómetro, cuja responsabilidade de manutenção cabia ao Oficial de Navegação. O procedimento de dar a corda ao cronómetro que estava guardado numa caixa de madeira e possuía dois eixos de rotação a fim de absorver as movimentações do navio, era perfeitamente definido e era mesmo um ritual, com o fim de garantir que a sua variação era controlada. Claro que isto se passava antes da era do GPS. Um cronómetro é, portanto, um relógio que tem uma precisão garantida acima de determinados padrões estabelecidos internacionalmente.

Já um cronógrafo é um relógio que permite medir e mostrar períodos de tempo, isto é, que possuem mecanismos que se põem a trabalhar e se param através de botões. Um exemplo de cronógrafo é o famoso Speedmaster da OMEGA que foi até hoje o único relógio usado na Lua, por ter sido adoptado pelo programa Apollo que levou o Homem ao nosso satélite natural pela primeira vez em Julho de 1969.

Há uma expressão vulgar que me habituei a considerar como representativa de ignorância por parte de quem a emprega: «Espaço de tempo».

Na física clássica, o espaço é definido por três eixos ou apenas dois se considerarmos um plano. Para além disto, havia o tempo que definia o momento do acontecimento, independentemente da localização geométrica, mas que se lhe podia associar para o definir completamente. Após a teoria da relatividade, a distância passou a ser definida em função do tempo e da velocidade da luz, isto é, o metro passou a ser definido como a distância percorrida pela luz em 0,000000003335640952 segundos medidos por um relógio de césio. Este valor corresponde à distância entre duas marcas numa barra de platina guardada em Paris, que é a definição que aprendemos na escola primária.

Curiosamente, vista desta forma, a expressão “espaço de tempo” já não parece tão ignorante, o que mostra que estamos sempre a aprender.

 

Sem comentários: